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O xadrez está na moda

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O xadrez está na moda
(Foto: Divulgação/Pixabay)

Na semana passada, com a receita e os ingredientes do bolo de ameixa da minha avó, fui à casa da Dona Maria para cumprir a promessa de fazermos uma receita especial a quatro mãos.

Aliás, promessa nas “bandas do Porto” é coisa séria que deve ser cumprida com certa brevidade. Uma atitude que deveria ser natural na nossa vida privada e na pública.

Cheguei ao portão e bati palmas à moda antiga. E lá vem Dona Maria com seu sorriso largo, chinelos fazendo barulho pelo tempo de uso e braços abertos para me receber.

Ainda de longe disse:

– Entre minha filha, a casa é sua. Que bom que você veio!

Foi me conduzindo para a varanda. Sentamos um pouco para tomar um ar. Aproveitei para entregar-lhe a “famosa receita”.

Ela ia começar a ler, mas parou e perguntou:

– De quem é esta receita?

-Da minha avó materna, respondi.

Com um suspiro aquela senhora acessou suas lembranças. Passou a contar o quanto ela e minha avó tinham sido amigas e vizinhas no Porto, fato que eu não tinha conhecimento.

No saudosismo típico dos que já passaram dos 70, Dona Maria continuou:

– Bons tempos! A vizinhança se conhecia, sabiam os nomes uns dos outros e até do carteiro. Hoje, nem sei mais quem mora na esquina. É cada um por si e Deus por todos.

Com um impulso, interrompeu suas lembranças e ficou em pé. Pegou-me pelo braço e fomos para a cozinha.

De avental e touca, colocamos as mãos limpíssimas na massa. A forma untada e branquinha de trigo levou o bolo ao forno pré-aquecido. A calda estava borbulhando no fogão e foi desligada para esfriar.

Tiramos o avental e nos sentamos na cadeira de balanço para esperar o ponto certo de abrir o forno e saborear nossa obra de arte.

O calor fez dona Maria tirar o casaquinho. Reparei o seu vestido bem cortado e com uma estampa xadrez. Fiz logo um elogio:

– Este xadrez lhe caiu muito bem e está na moda.

Para meu espanto ela juntou as sobrancelhas em tom de reprovação e me advertiu.

– Não fale isso nem por brincadeira. Está aí uma coisa que não me cai bem.

E, gesticulando com as mãos no ar, explicou:

– Minha filha, até pouco tempo falávamos de xadrez nos referindo ao jogo que José praticava aqui na praça com seus amigos aos sábados pela manhã. Ou quando escolhíamos o traje caipira das festas juninas. Cadeia, era xadrez sim, mas se alguém da família fosse parar lá, todos ficavam envergonhados. Conheci a mãe de um menino que morreu de desgosto por ele ter parado naquele lugar.

E prosseguiu:

– Agora, de fato, deve mesmo estar na moda porque o que mais vejo na TV e escuto na rádio é uma porção de gente indo e vindo do xadrez com a cara mais limpa do mundo. Nem sei mais quem já foi e quem saiu. E se antes era lugar das pessoas humildes, que não podiam nem pagar advogado. Agora, está indo gente graúda, de dinheiro, estudada e até os políticos.

Com o dedinho indicador em riste finalizou:

– Não é mais só para o ladrão de galinha, agora está indo o dono do galinheiro. Só que ninguém fica envergonhado.

E se ajeitou na cadeira deixando o tom senhorial.

– É verdade dona Maria, respondi. O xadrez está mais democrático e acessível a todas as classes sociais. Uma estampa que tem estado na moda tanto no inverno como em outras estações. E não tem sido uma tarefa fácil acompanhar as idas e vindas das pessoas que passam por lá.

Neste ponto o cheiro do bolo aumentou e ela foi em direção ao forno para retirá-lo. Colocou-o na mesa onde já estavam os pratos, os garfos e a garrafa de café. Enquanto comíamos, fez-se um breve silêncio. Goles de café, mais risadas, “causos” e nos despedimos.

Voltei para casa apreciando o alaranjado das tardes de outono. E inspirada nesse cenário me coloquei no tabuleiro da vida em sociedade. Um jogo que está a exigir de nós a definição de novas estratégias, a adoção de movimentos precisos e bem concatenados para avançarmos e darmos um xeque-mate em certas posturas, paradigmas, atitudes e decisões que já “não nos servem mais” e estão, literalmente, fora de moda.

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