O sentimento que inspira a exclusão da religião do espaço público da política e da moral coletiva, ou seja, o nosso bom e velho preconceito religioso, é pequeno, mesquinho e – eu posso afirmar – paroquial.
O mundo anglo-saxão onde eu vivo há dez anos não legitima o preconceito religioso, como o Brasil faz abertamente. Não estou dizendo que ele não está presente. Estou dizendo que não existe a articulação racional que valida este preconceito.
A religião é parte da herança ocidental, do saber público, da formação dos hábitos e dos costumes ocidentais – e é respeitada por muitos como uma proposta filosoficamente superior ao materialismo.
Mas, no Brasil, tapamos o nariz, cheios de um nojo supostamente racional ao falarmos de religião. Essa aversão não é causada pelo ridículo factual da religião em si. Na armadilha desta conclusão apressada caem até alguns cristãos quando se dizem, por exemplo, com dificuldades de defenderem a religião evangélica por causa da vergonha que alguns pastores lhes fazem passar.
Não, esse preconceito não tem nada a ver com pastores ridículos ou padres pedófilos. Acontecem mais abusos no sistema de educação pública do que em qualquer religião. E não tem nada na religião que se contraponha à elegância das certezas absolutas do racionalismo científico, como alguns desavisados podem pensar. O preconceito que cultivamos está diretamente ligado ao classismo inerente à nossa ideia de civilização.
Vaga origem europeia
Nos dizemos “ocidentais”, mas da verdadeira cultura ocidental temos muito pouco, como já dizia o mestre Gilberto Freyre.
Acredito que nosso apego a essa definição ocidentalizada do ethos brasileiro não é consequência da dominância dos padrões de pensamento europeu, mas uma apego emocional ao vínculo com a nossa vaga origem europeia. Esta “europeidade” deixou marcas de abandono na nossa alma – mas sua racionalidade se extinguiu devagar ao se amalgamar com os ameríndios e africanos nos primeiros séculos.
Mas nós os pobres euro-tupiniquins, aceitamos a premissa da superioridade européia, e nos esforçamos para manter esta migalha de auto-percepção positiva. E o que entendemos por “ser europeu” nesse sentido, e por consequência ser intelectualmente superior, é a rejeição categórica da religião e do misticismo.
Iluminismo como religião
Como toda história de desajuste, o que consideramos superior é oposto àquilo que somos. Nossa identidade coletiva sofreu sua primeira sabotagem quando o Marquês de Pombal adotou o iluminismo como religião e resolveu secularizar o Estado.
Depois esse ataque se consolidou através do positivismo, abraçado por nossos monarcas e pelos primeiros governantes da Nova República. Tanto o iluminismo quanto o positivismo desprezam a religião como um estado inferior do ser racional.
O positivismo que se consolidou como cosmovisão nacional através da literatura, como diz o crítico Alfredo Bosi, é a “hegemonia da coisa especializada, mensurável e impenetrável, portanto opaca e inerte”.
Desprezo por gente
Ou seja, o positivista despreza tudo o que tem cheiro de gente, que tem que ser ganho no debate e nas concessões da política. Ele despreza a inclusão da moral e da religião como uma necessidade nos processos de construção social, e despreza a mística e o mistério do nosso “ser brasileiro” supersticioso e crédulo, buscador de uma realidade transcendente que o explique, seguidor de milagreiros, santos e pregadores do apocalipse iminente.
Na visão positivista de mundo, a evolução humana passa por três estágios. O primeiro é o estágio teológico, que é um estado inferior. Neste patamar primitivo, a humanidade precisa de explicações místicas para fenômenos naturais.
A religião, em todas as suas formas, seja a feitiçaria, o animismo ou monoteísmo, é uma forma inferior da razão. Apelar para forças sobrenaturais para interpretar a realidade é coisa de fracos que vivem num patamar evolutivo inferior.
Nessa fase os seres humanos aceitavam as doutrinas da Igreja, a força das tradições e a mística dos rituais sem com elas contenderem racionalmente. Esta aceitação resignada do mistério é uma forma inferior de existência para Comte, o principal positivista social abraçado pelos brasileiros.
“Forças” da lógica e da racionalidade
Depois deste estado teológico o ser humano progride ao estado “metafísico,” que é marcado, na visão de progressão histórica de Comte, pelo Iluminismo. A Revolução Francesa é a culminação das forças da lógica e da racionalidade em luta contra o mundo obscurantista da fé.
Não é à toa que no Brasil não somos fãs da Revolução Americana. Para nossos positivistas, os americanos não se emanciparam da religião como os franceses conseguiram, e se mantiveram num estado mais primitivo da evolução humana.
O último e mais desenvolvido é o estágio do positivismo, onde a confiança do ser homem repousa apenas (e é importante destacar este apenas) na força da racionalidade e da lógica. A ciência e a tecnocracia contêm a solução para todos os problemas humanos – e se respostas científicas ainda não foram encontradas para perguntas existenciais transcendentes, é só uma questão de tempo.
Assim como os progressistas, os positivistas acreditam no controle da elite letrada sobre o futuro da sociedade, e numa resposta técnica para solucionar problemas sociais. Um exemplo é a educação. Como melhorar a moral das massas? Educação é sempre a resposta dos positivistas e dos progressistas.
Mas as duas ideologias querem dizer coisas diferentes com a palavra educação. Enquanto para o progressista ela claramente significa a doutrinação das mentes para uma dominação hegemônica, para o positivista significa “cientificar” a mente das crianças. A ciência é para eles a mãe de todas as respostas da vida.
Um Bolsonaro impassível?
Nossos colunistas, youtubers e radialistas da direita “isentona”, claramente positivistas, querem um Bolsonaro impassível, se possível mínimo em palavras e máximo em exercer o poder presidencial para impor a nova administração sem barulhos nem diálogos suarentos e olorosos. Quantos mais técnicos forem os ministros e suas propostas, mas afinados estão com essa direita.
O presidente americano Donald Trump acabou de fazer seu último discurso “State of Union Address” como presidente neste mandato. O “State of the Union” é um discurso apresentado em janeiro ao Congresso, em que o presidente avalia e apresenta as realizações de sua administração no ano que passou. Um de seus pontos em 2020 foi tornar claro que quer suspender o banimento de oração na escola pública. Ele disse:
“Na América nós não punimos oração, nós não derrubamos cruzes, não destruímos símbolos de fé, não amordaçamos pastores e pregadores. Na América nós temos carinho pela religião. Nós erguemos nossas vozes em oração e levantamos nossos olhos ao alto, para a glória de Deus.”
Que chegue o dia em que poderemos aqui no Brasil também celebrar o nosso apego e respeito pela religião, sem medo de sermos considerados bregas, ignorantes ou primitivos, e principalmente sem o verniz pseudo-civilizatório da razão autossuficiente, esta sim um arroubo ilusório da ignorância.