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O caso Kyle Behm e discriminação algorítmica na seleção ao emprego

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O caso Kyle Behm e discriminação algorítmica na seleção ao emprego

Carla Reita Faria Leal*
Antonio Raul Veloso de Alencar*

Kyle Lawton Behm era um estudante da Universidade de Vanderbilt nos Estados Unidos. No início de sua graduação, ele precisou se afastar para tratamento de um transtorno bipolar. Já recuperado, Kyle buscou reconstruir sua vida: retornar à universidade e conseguir um emprego de meio período que pudesse conciliar com seus estudos.

À época, um de seus amigos soube de um posto de trabalho aberto na loja em que trabalhava e indicou Kyle para a vaga. Kyle realizou todo o processo seletivo, mas não foi chamado. Ao questionar seu amigo sobre as razões, foi informado de que ele havia sido sinalizado pelo software de seleção, no teste de personalidade on-line, realizado com os aplicantes aos postos de trabalho da empresa.

Apesar da decepção, Kyle foi estimulado por seu pai Roland Behm, um advogado, a buscar por outras oportunidades em diferentes empresas. No entanto, após se candidatar a vagas para empregos de tempo parcial e salário mínimo em outras 5 empresas, Kyle foi reprovado em todas elas. O fato chamou a atenção de seu pai, que lhe perguntou que tipo de perguntas faziam parte dos testes de personalidade a que era submetido. Kyle respondeu que as perguntas se assemelhavam ao teste psicológico por ele realizado quando se encontrava no hospital em tratamento de seu transtorno bipolar.

A partir disso, Roland e Kyle perceberam que as perguntas realizadas, ao se assemelharem a um teste médico-psicológico, eram capazes de detectar traços de doenças mentais, excluindo os candidatos que eram sinalizados, ainda que estes estivessem sob tratamento e em plenas condições de desempenharem atividades laborais. Todas as empresas usavam o mesmo software de seleção desenvolvido pela empresa Kronos, baseado em cinco fatores de personalidade.

Diante da situação, Roland decidiu enviar notificações às sete empresas (incluída a desenvolvedora dos testes), informando-as de sua intenção de entrar com uma ação coletiva alegando que o uso do exame durante o processo de candidatura seria ilegal, na medida em que privava, de plano, as pessoas com deficiências de terem acesso ao mercado de trabalho.

A ferramenta criava uma espécie de círculo vicioso, privando certos indivíduos com problemas de saúde mental de encontrar um emprego e de viver uma vida normal, isolando-os ainda mais.

É importante notar que o transtorno apresentado por Kyle amolda-se perfeitamente ao conceito de deficiência trazido pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, segundo a qual as pessoas com deficiência são aquelas que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, as quais, em interação com várias barreiras, podem impedir a sua plena e efetiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros indivíduos.

Esses softwares têm a pretensão de otimizar o processo de seleção, classificando os candidatos de acordo com características buscadas pelo contratante. Trata-se de um mercado de mais de 500 milhões de dólares anuais. Eles já são usados com 60% dos trabalhadores em potencial, sendo que 72% dos currículos sequer chegam a ser analisados por uma pessoa nos Estados Unidos.

Cabe ressaltar que os indivíduos, ao procurarem um emprego, não buscam apenas um modo de subsistência, mas também um meio de realização pessoal, profissional e social. O que é obstado pelos testes automatizados.

O caso de Kyle acabou por gerar uma investigação na Comissão de Igualdade de Oportunidades de Emprego nos Estados Unidos, além de acordos nos quais algumas das empresas se comprometeram a modificar certos critérios em suas ferramentas de seleção.

Apesar disso, sua história não teve um final feliz: em 27 de agosto de 2019,[1] Kyle acabou perdendo a batalha contra seus problemas de saúde mental e tirando sua própria vida aos 29 anos de idade.

A história Kyle é referida no documentário “Persona: The Dark Truth Behind Personality Tests”, no livro “Weapons of Math Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy” e em diversos artigos científicos que abordam a discriminação no contexto da pessoa com deficiência. Atualmente, o pai de Kyle, Roland Behm, é ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, especialmente, no contexto da saúde mental.

 

*Carla Reita Faria Leal e Antonio Raul Veloso de Alencar são membros do Grupo de Pesquisa sobre meio ambiente do trabalho da UFMT, o GPMAT.

[1] Conforme informações obtidas no aviso disponibilizado na página do crematório de Geórgia. Disponível em: https://www.csog.com/obit/kyle-lawton-behm/. Acesso em: 02 fev. 2021.

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