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Entrada do bloco Y, uma das construções na Salgadeira: abandono

No dia 19 de junho de 2015, uma sexta-feira, menos de 24 horas depois do lançamento da 30ª edição do Festival de Inverno de Chapada dos Guimarães, enquanto muitos motoristas vindos de Cuiabá passavam pela MT-251, funcionários do governo estadual instalaram uma placa na frente do Complexo Turístico da Salgadeira, na altura do quilômetro 42 da rodovia: “Obra retomada com responsabilidade”, anunciava, em letras garrafais. Parecia uma tentativa clara de apaziguar os ânimos de quem não aguentava mais esperar pela melhoria de um dos mais tradicionais pontos de lazer dos cuiabanos. Composto por um córrego que corre por baixo da rodovia e desagua em uma queda de 20 metros de altura, o chamado “complexo” tem uma história de obras que vem de longe.

Em 1910, quando o coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa, então vice-presidente do Estado de Mato Grosso, quis proteger a região de Chapada dos Guimarães do assoreamento feroz que quase entupia as cabeceiras dos rios Coxipó-açu, Manso e Cuiabá, ele se lembrou da Salgadeira. Um vale banhado por águas cristalinas aonde os viajantes tropeiros no início do século XIX vinham sacrificar seu gado, salgar as carnes e secá-las ao sol às margens do córrego que depois nomearam córrego da Salgadeira – segundo narra um artigo do ICMBio, hoje responsável pelo parque. Aquelas águas, que surgem do aquífero Guarani a 1,5 quilômetro da superfície, desenrolam-se pelas curvas do rio Claro e alcançam o rio Coxipó, constituíam um importante afluente cuja preservação, na visão do coronel, era fundamental para garantir a navegação em rios como o Cuiabá. O coronel Pedro Celestino foi o primeiro a estabelecer uma área de proteção ambiental em Chapada dos Guimarães, e quando fez isso incluiu a Salgadeira e tudo aquilo que existia em um raio de dois quilômetros da encosta, conforme o decreto 262, que baixou em 1910. Mais de 60 anos depois, em 1976, o Conselho Nacional do Turismo traçou outro perímetro, de 30 mil hectares, em torno da chapada.

Maria Angélica Oliveira/O Livre

banho cachoeira salgadeira

Famílias tomam banho nas águas da Salgadeira durante domingo de carnaval

No início dos anos 1980, a Salgadeira já havia sido descoberta pelos turistas – e pelos comerciantes. Foi desapropriada pela primeira vez durante o governo de Frederico Campos. Em 1984, já com o Estado sob o comando do sucessor Júlio Campos, a sociedade civil do município iniciou uma série de pressões para que um terceiro perímetro fosse criado por lei em torno da chapada. A ideia saiu do papel em abril de 1989, depois da assinatura do decreto 97.656, que criou o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, uma área protegida de 32.630,70 hectares e 112 quilômetros de perímetro. Desta vez, a Salgadeira, com sete hectares, ficou de fora da área do parque, remanescendo como propriedade do governo do Estado. Ainda em 1984, as primeiras construções foram erguidas ali, e inauguradas sob o nome: “Terminal Turístico da Salgadeira”.

Catorze anos depois, em junho de 1998, o governador Dantes Martins de Oliveira concluiu a primeira reforma nos dois blocos que compõem o complexo, um em formato de “L”, outro em “Y” – um em cada lado da rodovia. Na entrada do segundo, grudou uma placa de bronze com seu nome e os nomes do então presidente Fernando Henrique Cardoso, do ministro do Meio Ambiente, Gustavo Krause, do secretário do Meio Ambiente, Frederico Müller, do secretário do Turismo, Carlos Avalone Júnior, e do secretário de Infraestrutura, Vitor Candia – seguidos pela frase: “Reordenamento do Terminal Turístico da Salgadeira”. Nos doze anos subsequentes, muitos foram felizes na Salgadeira. Até que outro perímetro foi traçado, desta vez com tapumes de ferro cinza que estampam placas onde se lê: “Proibida a entrada: Cumprimento de sentença. Autos nº 847-21.2010.811.0082”.

Bruno Abbud/O Livre

placa interdição salgadeira

Placa de interdição decidida pela Justiça em 2010

Instaladas ao longo da rodovia em setembro de 2010, as barreiras surgiram depois que o juiz José Zuquim, do Juizado Volante Ambiental (Juvam), acatou ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público para tentar impedir a degradação ambiental provocada pelos frequentadores. Pela segunda vez, comerciantes foram retirados. Vieram os tapumes. Depois, as pichações – “O público não é privado”, dizia uma delas. “Mais uma obra que não termina, eleitores”, bradava outra. Mais tarde, as invasões. Não demorou para surgirem duas aberturas na parede de ferro e banhistas que, até hoje, penetram o lugar sem pudor. A polícia finge que não vê.

Por três anos, o córrego continuou a refrescar os cuiabanos, mas as construções, cercadas pela Justiça, seguiram abandonadas. Em 2013, no entanto, chegou a notícia: pela terceira vez na história uma obra seria inaugurada na Salgadeira. A menos de um ano da Copa do Mundo, as empresas Farol Empreendimentos e Participações S/A. e Ypenge Projetos Florestais e Ambientais formaram o Consórcio Salgadeira, e concorreram sozinhas à licitação com uma proposta de R$ 6.377.402,13. Depois da ata de abertura dos envelopes, em 10 de outubro daquele ano, a Comissão de Licitações declarou a licitante inabilitada. Mas oito dias depois aceitou a proposta. O contrato foi assinado em 26 de novembro de 2013 pelo secretário Maurício Souza Guimarães, da Secretaria Extraordinária da Copa do Mundo (Secopa), e pelo representante do Consórcio Salgadeira, Domingos Menezes Filgueira Moussalem. A ordem de serviço saiu 21 dias depois e as obras começaram em janeiro de 2014, com prazo de conclusão previsto para junho, mês da Copa – mas isso não aconteceu.

Bruno Abbud/O Livre

capim contrapiso salgadeira

Capim nasce através do contrapiso de cimento

Uma série de erros no projeto inicial da reforma, relatados pela Farol Empreendimentos e constatados pelo governo, fez com que as obras, atrasadas, seguissem até dezembro, quando a Secopa, extinta, transferiu o contrato para a Secretaria de Estado de Desenvolvimento do Turismo (Sedtur). No início do mandato de Pedro Taques (PSDB), os trabalhos no canteiro foram interrompidos. Em abril de 2015, o governo montou uma comissão para analisar problemas na execução da reforma. Integrada por servidores da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico (Sedec), que absorveu a Sedtur e ficou responsável pela liberação dos recursos da obra, e da Secretaria de Estado das Cidades (Secid), que herdou a fiscalização do contrato da Secopa, além de funcionários da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) e da Controladoria Geral do Estado (CGE), o grupo tinha 30 dias para avaliar o que havia de errado com o projeto. Ao fim do prazo, contudo, nenhum parecer foi emitido à empresa.

Em 25 de junho de 2015, os auditores Alan Nord e Benedito Carlos Teixeira, da Secretaria de Controle Externo de Obras e Serviços de Engenharia do Tribunal de Contas do Estado (TCE), assinaram um relatório assombroso sobre vários contratos da Secopa – o caso da Salgadeira estava entre eles. Ali, os auditores constataram que havia “patologias construtivas que colocavam em risco a integridade física dos usuários”. Elencaram os problemas: porcelanatos colocados sobre estruturas de ferro enferrujadas. Mudas de plantas nativas mortas. Falha no cálculo do saldo acumulado. Um sobrepreço de R$ 29 mil nas planilhas de medição. Danos na manta de isolamento térmico. Falhas de planejamento. Presença de cupim. Atraso na obra. “O fiscal da obra relatou que o atraso decorreu de inconformidades de projetos, inclusive por falta de atualizações. Tal fato é recorrente nas obras contratadas pela Secopa analisadas neste relatório”, diz um trecho do documento, que, no fim, recomenda a abertura de uma auditoria na obra da Salgadeira: “Há indício de omissão por parte da Secopa em permitir a execução de obra nova sobre parte pré-existente danificada, com potencial risco de ruína. Tal fato será objeto de proposta de determinação para que a Sedtur, sucessora da Secopa neste contrato, instaure tomada de Contas Especial”, escreveram os auditores. Mesmo assim, um mês depois da conclusão do relatório, o governo decidiu renovar o contrato com o Consórcio Salgadeira, com um aditivo de prazo que se estendia até julho de 2016. Antes da prorrogação, às vésperas do fim de semana de festa em Chapada dos Guimarães, o caminhão do Estado apareceu no quilômetro 42 da MT-251, e a placa foi instalada na frente da Salgadeira.

Em julho de 2016, um ano depois da prorrogação do contrato com o Consórcio Salgadeira, o novo prazo havia expirado, o contrato não foi renovado e a obra, mais uma vez, permaneceu abandonada. Quando chegou dezembro de 2016, a Justiça exigiu do governo uma providência, sob o risco de o Executivo ter de arcar com uma multa diária de R$ 100 mil caso não fosse apresentada em 30 dias uma proposta definitiva para concluir a revitalização. No fim de janeiro, o secretário Wilson Santos, das Cidades, enviou ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) uma solicitação para incluir o caso da Salgadeira em um Termo de Ajustamento de Gestão (TAG). Nesse intervalo de tempo, o proprietário da Farol Empreendimento, empresa que executou parte da obra na Salgadeira, resolveu pela primeira vez dar à imprensa sua versão sobre o que houve de errado na obra até agora. Ele culpou a empresa, contratada durante o governo Silval Barbosa, responsável pelo projeto arquitetônico original, se disse de posse de um dossiê e envolveu um homem alto do atual governo em uma conversa pouco republicana.

(Com reportagem de Maria Angélica Oliveira)

No próximo capítulo da série “O calvário da Salgadeira”, saiba como está o canteiro de obras atualmente e o que alegam os empresários responsáveis pela revitalização.

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