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O amor é cego? A realidade do processo de adoção no Brasil

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O amor é cego? A realidade do processo de adoção no Brasil
(Foto: Assessoria / Ampara)

Duas listas. Uma com os dados das famílias que têm interesse em adotar uma criança. Outra com os dados das crianças que estão à espera de um novo lar. Em ambas, uma breve descrição de perfis.

Futuros pais dizem como desejam seus filhos. Crianças têm suas características físicas – como idade, cor, sexo, condição de saúde – reveladas. Promover o encontro entre eles fica a cargo de um juiz.

Assim funciona o sistema de adoção no Brasil: com quase nenhum encontro espontâneo entre os pretendentes à adoção e os pretendentes a uma família. Em regra, eles só se vêm depois que o magistrado entende que os perfis descritos brevemente nas duas fichas são compatíveis.

O perfil de criança mais desejado engloba características como pouca idade, nenhum problema de saúde ou deficiência e nenhum irmão ou irmã.

O resultado disso é uma fila, só em Mato Grosso, com 956 pessoas ou famílias habilitadas para adoção e outra com 75 crianças que não correspondem ao que esses futuros pais esperam.

Uma realidade que poderia ser diferente, na avaliação de Lindacir Rocha, se houvesse uma abertura maior das instituições de acolhimento desses órfãos.

Ver de perto

Pelo menos um encontro livre das amarras dos perfis acontece em Mato Grosso entre os integrantes das duas filas. Ele ocorre logo que os candidatos a pais adotivos são aceitos pelo Poder Judiciário. É promovido pela Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara), entidade da qual Lindacir é presidente.

“Nós vamos com a autorização do juiz para um lanche da tarde. Passamos a tarde lanchando, brincando e os pretendentes conhecem a realidade da instituição. Não raras vezes, se apaixonam por um outro adolescente – porque as crianças, em geral, não precisam disso – e depois vão na Vara da Infância e Juventude dizer isso para o juiz. Daí o juiz autoriza uma aproximação, outras visitas, passeios, até a pessoa ou família dizer que realmente quer aquela adoção”, ela afirma.

Mas apenas um encontro é pouco. Segundo Lindacir, os próprios futuros pais adotivos reclamam. “É que na primeira visita, normalmente, eles ficam emocionados e têm que se controlar”.

Ela explica que os cuidados necessários – orientados por psicólogos da Ampara – para não estragar o encontro acabam, muitas vezes, inibindo uma convivência “de forma mais solta e agradável”, como se esperava que ocorresse. “Então, seria necessária, sim, a possibilidade de mais visitas e de outras ações, como passeios”, completa.

Presidente da Ampara, Lindacir Rocha afirma que ainda existem muitas amarras que impedem convivência entre quem quer adotar e quem precisa ser adotado (Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Direito à família

Segundo Lindacir, essa abertura maior não tem ocorrido porque a Justiça esbarra em uma questão: o direito à preservação da imagem desses – quase sempre – adolescentes. “É aí que nós entramos batendo na seguinte tecla: eles também têm direito à família e à convivência social”, ela contesta.

“E qual é o direito que traz mais frutos? É o direito à família, porque ele vai ser educado, vai ter afeto. O direito à preservação da imagem vai fazer ele ficar escondido e sem oportunidade de viver como um ser humano deve viver”, argumenta a presidente da Ampara.

Promover esse encontro – entre quem exige determinado perfil e quem não corresponde a essas expectativas – foi a intenção do desfile “Adoção na Passarela”, realizado na terça-feira (21) em um shopping center de Cuiabá. Um evento que já havia ocorrido anteriormente e resultado na adoção de dois adolescentes, de 14 e 15 anos.

A iniciativa – que teve aval das Varas da Infância e Juventude de Cuiabá e Várzea Grande e apoio da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso (OAB-MT) –, no entanto, também esbarrou na questão do direito à preservação da imagem dos órfãos. Causou reações negativas nas redes sociais e manifestações de repúdio, inclusive, de operadores do Direito. Advogados e defensores públicos questionaram a metodologia.

Lindacir viu hipocrisia nos comentários, “primeiro, porque a maioria daqueles adolescentes têm Facebook, já estão nas mídias sociais. Inclusive, fico triste e tenho medo que eles tenham visto tudo o que aconteceu, porque estão denegrindo a imagem deles”, pontuou.

Para o juiz coordenador das Varas da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, Túlio Duailibi Alves Souza, as manifestações não se deram com base em fatos concretos, mas em cima de “perspectivas abstratas, se um desfile teria ou não capacidade de trazer prejuízo aquelas crianças e adolescentes”.

Segundo o magistrado, até onde o Poder Judiciário sabe – e havia outros juízes acompanhando o evento presencialmente, conforme Duailibi –, o desfile não expôs os órfãos “como objeto de visualização para dizer: ‘estou aqui para ser adotado’” ou “objeto de mercancia, como se tem propagado”.

“Foi tudo dentro de um ambiente propício ao fim que o evento foi idealizado. E nós temos que potencializar, sim, a visibilidade dessas crianças e adolescentes”, defendeu o juiz, destacando que existem inúmeras outras iniciativas semelhantes do outros Estados.

Segundo o juiz coordenador das Varas da Infância e Juventude, Túlio Duailibi, o Poder Judiciário vai continuar apoiando projetos que visem dar visibilidade à adoção tardia (Foto: Ednilson Aguiar / O Livre)

Visibilidade

Entre as campanhas já realizadas no Brasil buscando o mesmo fim – a adoção tardia, como é chamada –, ganhou destaque neste ano a idealizada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Com o nome “Adote um Boa Noite”, ela venceu a XV edição do Prêmio Innovare, que tem como objetivo incentivar práticas que contribuam para o aprimoramento da Justiça no Brasil.

A campanha do Judiciário paulista contou com um vídeo que passa a ideia de que a hora de ir dormir é um momento especialmente solitário para crianças que não contam com um beijo de “boa noite” dos pais, mas também com um site, onde são expostos nomes, dados pessoais e as fotos dos órfãos que não se encaixam no perfil que a maioria das famílias buscam.

O projeto do Tribunal de São Paulo, segundo matéria publicada no site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), seguiu a linha de uma campanha semelhante, feita pelo Judiciário do Espírito Santo: um vídeo em que um menino de 11 anos que vive em um abrigo aparece brincando, interrompe a atividade, olha para a câmara e faz um pedido: “eu queria ter uma família, ser adotado, dar amor, carinho e respeito. Você quer ser minha família?”.

Chamada de “Esperando por você”, a campanha do Tribunal de Justiça do Espírito Santos, ainda conforme informações do CNJ, foi divulgada, em 2017, em diversos shoppings centers da região metropolitana de Vitória. Fez parte de uma estratégia de comunicação que envolveu a produção de outros 20 vídeos parecidos.

Para onde vão?

Segundo Lindacir, os adolescentes que não encontram uma família só podem viver nos abrigos até completar 18 anos. “Me parece que as pessoas não pensam muito nisso: para onde eles vão. Para as ruas, sem preparo?”, ela questiona.

O projeto “Construindo Autonomia”, desenvolvido pela Ampara, tem como foco esses órfãos. Consiste em promover passeios, para que esses jovens tenham experiências além dos muros dos abrigos, e capacitação profissional, que proporcione a eles condições de conseguir um emprego e seguir suas vidas sozinhos.

De uma parceria feita anos atrás com a Prefeitura de Cuiabá, um deles saiu empregado. “Agora, com esse auê todo, estamos resgatando esse projeto. Recebemos uma parceria de uma agência de publicidade que quer capacitar esses meninos e meninas. A gente diz que há males que vêm para o bem”, ela conta.

Mas onde morar ainda é a principal questão. Segundo a presidente da Ampara, alguns jovens acabam em repúblicas de estudantes. Há casos de outros que conseguiram, junto ao governo federal, casas do programa “Minha Casa, Minha Vida”.

“Mas também tivemos um adolescente que saiu do abrigo e foi para as ruas. Arrumou emprego em um posto de gasolina, se envolveu com usuário de drogas e, 15 dias depois, foi assassinado. É a tendência, se a gente não voltar o olhar para eles”, ela lamenta.

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