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O amor depois do divórcio: os caminhos para pedir a nulidade do casamento

A “carta de nulidade” é dada a casais que, por algum motivo, não cumpriram o juramento feito no momento do sim

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O amor depois do divórcio: os caminhos para pedir a nulidade do casamento
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

O sacramento do matrimônio foi estabelecido para ser para sempre. Porém, até mesmo na bíblia o divórcio é citado. Um exemplo é no capítulo 19 de Mateus, em que é relatado que Jesus disse: “Moisés permitiu que vocês se divorciassem de suas mulheres por causa da dureza de coração de vocês”.

Nem todos sabem, mas a Igreja Católica possui meios que permitem a nulidade de um casamento religioso. A “carta de nulidade” é dada a casais que, por algum motivo, não cumpriram o juramento feito no momento do sim.

“Um exemplo pequeno: antigamente os pais obrigavam as filhas a casarem se elas engravidassem, então ela não ia por amor a esse homem; ela jurava amor e fidelidade, mas ia por pressão da família. Então isto é considerado um casamento nulo, não houve o casamento, porque o sacramento do matrimônio é a aceitação, naquele momento eu preciso estar indo de livre e espontânea vontade”, disse Sônia Maria Pinheiro Ferro Yoshida, 52 anos, que há dois anos ajuda casais em segunda união a conseguirem a carta de nulidade.

Antigamente, os casais em segunda união eram mal vistos dentro da igreja e sofriam grande preconceito. Hoje, graças ao trabalho da pastoral familiar, os casais estão sendo aceitos e ganham uma oportunidade de continuar vivendo dentro da igreja.

Sônia explicou ao LIVRE como funciona o processo para conseguir a nulidade, mas a reportagem foi além e conheceu um casal que iniciou vivendo em segunda união e, com diversas provas de que estavam lado a lado por vontade de Deus, hoje contam sua história como testemunho de fé.

A enfermeira Valéria Teixeira de Andrade, 42 anos, e o contador Claudinei Santos Costa, 43 anos, tiveram uma história digna de filme. Os dois se conheciam desde muito jovens, mas foi já na fase adulta, com Claudinei divorciado há dois anos, que se reencontraram e se apaixonaram.

O divórcio

Católico, Claudinei namorava há muitos anos e amava sua primeira mulher. Ela era evangélica e não quis fazer um casamento ecumênico, então os dois se casaram somente na Igreja Católica.

Anos depois, ela pediu a separação dizendo não acreditar no casamento para o resto da vida, que não o amava mais e não iria viver com uma pessoa que não amava.

“Na verdade, quando teve o divórcio eu pensei que estava perdido, porque eu casei na igreja… e agora? É para o resto da vida, a mulher falou que não amava mais, que não queria mais e agora eu não vou conseguir comungar, não vou conseguir casar. E para mim não tinha pedido de nulidade, nem nada, eu achava que não tinha o que anular, a gente pensa que tudo foi verdade”, contou Claudinei.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Ela afirmava que na igreja dela não havia problemas quanto ao divórcio, que se estivesse separada no cartório, a igreja permitia que ela se casasse novamente e sempre repetia a frase: “dê a César o que é de César”.

Ele estava com a primeira esposa há 10 anos, entre namoro, noivado e casamento. Conversou com o pastor dela, pediu orações, tentou a reconciliação, mas ela estava irredutível. O amor, para ela, tinha acabado. “Eu achava que eu estava perdido”, contou Claudinei.

O verdadeiro amor

Claudinei ficou “solteiro” por quase três anos. Como se sentia pecador, afastou-se da igreja e começou a viver uma vida comum. Saía, conhecia várias mulheres e chegou até a ter um filho, hoje com 10 anos. Ele pensava que sua vida seria assim para sempre, mas não era o que queria.

Cansado da vida “do mundo”, ele pediu a Deus que não era isso que sonhava, que queria uma família, voltar a comungar, sentia “sede de Cristo”.

“Eu morava sozinho na época e veio uma voz muito forte no meu coração ‘é isso que você quer? Então começa a apagar os telefones do seu celular agora, começa a agir por aí, você não quer essa vida? Então começa a falar não para essa vida’”, testemunhou Claudinei.

Ele apagou todos os contatos de mulheres e passou a não mais sair. Foram dois meses de negação à vida de solteiro, sem nenhuma resposta dos planos de Deus. Até que em um casamento, que havia ido só para levar as irmãs, tudo mudou.

Há 10 anos os dois não se viam. Valéria quase tinha se tornado freira. Quando se encontraram, ela era ministra da igreja e tinha acabado de retornar do convento. Naquele dia, Valéria estava cantando no casamento em que Clauidinei era convidado.

“Eu conhecia a Valéria de outros tempos, mas nunca me interessei como mulher, ela era a carola da igreja, sempre da renovação carismática e eu de grupo de jovens, uma linguagem totalmente diferente. Mas quando eu a vi, depois de 10 anos naquele altar, eu me apaixonei”, contou Claudinei.

Ele teve certeza, assim que a viu, que ela era a resposta de suas orações.  “Ele nunca teve dúvida, eu tive medo, ele não”, disse Valéria.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Ele nem ia na festa de casamento, mas mudou de ideia porque queria se aproximar de Valéria. Conversou com ela a noite toda e na hora de a noiva jogar o buquê, perguntou se Valéria não iria, com a negativa, ele entrou no meio das mulheres.

As solteiras falavam para ele sair e o empurraram, tirando-o da roda. Porém, o buquê bateu na mão de uma delas, voou e caiu na coxa de Claudinei, que o pegou.

“E eu fiquei procurando ela, lá do outro lado do salão, eu mirei ela e joguei, com muita força, para ela pegar. Sabe o que ela fez? Desviou. O buquê passou vazado por ela, ai as outras foram pegar”, lembrou Claudinei, aos risos. “Sempre achei um mico pegar o buquê. Me esquivei”, completou Valéria.

No outro dia ele foi à casa de Valéria, pegou o telefone dela, chamou-a para sair e, em três meses, os dois iniciaram um namoro. Ele, a todo momento, com a certeza de que a vida dos dois juntos havia sido reservada por Deus.

“Aí eu falei assim: ‘deixa eu só te perguntar uma coisa. Eu não tenho nada para te oferecer, eu já fui casado, você me conhece, eu não posso casar de novo, você é ministra, participa na frente da igreja’. Imagina, ela cantava, era ministra, todo mundo ama essa mulher. ‘Você está esperando o que da sua vida? Um príncipe encantado, solteirão, bonitão? Porque cara, eu tenho certeza que você é a mulher que Deus reservou para mim’”, contou Claudinei.

“Ele falou para mim: ‘amor, eu não tenho dúvida de que você é minha outra metade, então vem morar comigo, eu já moro sozinho, já sou independente, você também já viveu’, porque já tentei até ir para o convento, então eu já tinha tido muitas outras experiências e me sentia, como mulher, preparada para assumir. Aí falei: ‘então tá, mas antes eu vou conversar com meu pároco’”, disse Valéria.

No outro dia, ela foi para a casa de Claudinei, com uma cama de solteiro e um colchão na mão. Comunicou toda a igreja e os dois iniciaram uma vida de casal em segunda união.

A igreja

Os dois afirmam que, a todo momento, foram acolhidos. Sofreram preconceito de pessoas, mas jamais da igreja. Valéria, que era ministra da Eucaristia, procurou o frei responsável pela paróquia e falou que iria se afastar de todas as atividades pastorais que exigem a comunhão com os sacramentos.

O frei ficou preocupado com a ministra, perguntou se ela tinha certeza do que estava fazendo, mas Valéria respondeu que tinha muita fé.

Em seguida, ela fez uma reunião com os ministros e contou a todos, não queria fazer nada escondido e achava que essa era a melhor forma de descobrirem. Alguns ficaram chocados, mas agradeceram por ela mesmo estar contando e a entenderam, outros nem tanto.

“A igreja me acolheu o tempo todo, na pessoa dos freis, dos padres diocesanos, que me ajudaram muito na época, padre Reginaldo, padre Edmilton, que é vigário da catedral. Eu fui muito acolhida e orientada, por isso eu sempre tive clareza que se tinha alguma exclusão – por conta da minha fé mais madura, algumas pessoas não dão conta disso não – não era a igreja, eram algumas pessoas, pela desinformação”, disse Valéria.

“Eu falo que ela viveu isso para nós darmos testemunho da nossa vida. Porque eu sempre sonhei em ter uma família e de repente a mulher não quis mais, separou e eu pensei que estava vivendo à margem de Cristo, ia viver das migalhas. Ia na missa, olhava para alguns colegas meus que podiam e não iam comungar e eu com a sede”, afirmou Claudinei.

Os dois passaram a ir para a missa e não comungar. Somente na Quaresma faziam voto de castidade, chamavam um padre, confessavam e comungavam.

“Eu falo para muitos irmãos que vivem essa realidade, em momento algum eu senti pela igreja desamparado, eu talvez me coloquei como pecador, mas a igreja nunca me apontou o dedo de fato. Ela tem sim como trabalhar você. E quando procurei, entendi mais essa situação. E a gente decidiu entrar com a nulidade”, contou Claudinei.

Carta de nulidade

Foi Valéria quem perguntou se Claudinei já tinha pensado na possibilidade de o casamento ser considerado nulo. À época, em 2008, o assunto não era muito divulgado e tinha mais complicações. Atualmente, Cuiabá tem um tribunal eclesiástico e o julgamento é feito todo na Capital.

Os dois marcaram uma reunião no seminário do Cristo Rei, em Várzea Grande, com o padre Paulo Ricardo de Azevedo e iniciaram o processo. A princípio, Valéria acreditou que o indício para ser declarado nulo seria o fato de a ex ser evangélica.

A primeira parte do processo é uma entrevista, com um grande questionário, onde a pessoa precisa contar toda a vida, desde antes de se conhecerem, como foi o namoro, noivado, casamento, como eram as famílias. Não importa quanto tempo tenham vivido como casados, a pessoa apenas precisa se lembrar de tudo. E, assim como em uma separação litigiosa, não necessariamente os dois precisam estar de acordo.

A paróquia Nossa Senhora Aparecida, em Cuiabá, possui um núcleo para a montagem dos processos desde 2016. Durante esses dois anos, já ajudou 18 casais em segunda união. Sônia, uma das responsáveis pela montagem do processo, disse que a primeira entrevista dura, no mínimo, duas horas.

Normalmente, o processo dura entre um e três anos – o de Valéria e Claudinei demorou quatro. Como à época ainda não tinha o tribunal em Cuiabá, o processo deles foi montado no seminário, enviado para Campo Grande na segunda instância e por fim foi enviado para São Paulo, onde ficou por muito tempo.

“A gente começou a entrar com o processo de nulidade junto ao seminário. Que é um trauma também, porque aí eu descobri que tinha que relembrar toda uma vida, para nessa pesquisa descobrir se realmente houve nulidade, ou não. Aí você vai viver pontos positivos e pontos negativos que você queria apagar da sua memória”, disse Claudinei.

O processo

Depois de a entrevista ser feita, o processo é montado em cerca de uma semana. Com as respostas, a pessoa responsável procura os “cânones” que justificam o pedido da carta de nulidade.

Existem vários motivos que podem justificar o pedido. “Aquela coisa do casal falar ‘se não der certo eu separo’, se um padre ouve uma coisa dessa, ele já vai ficar meio atento, porque já é um casamento que não é válido. Como eu vou fazer experiência? Eu não posso fazer experiência com Deus, com Deus tudo é muito sério, tem que casar para dar certo. Então quando é experimento também não é válido”, disse a membro da pastoral familiar da paróquia Nossa Senhora Aparecida Sônia Maria Pinheiro Ferro Yoshida.

O próximo passo é procurar testemunhas que tenham vivido os problemas e conheçam bem o casal. No caso de Claudinei, foram chamadas 12 testemunhas (atualmente são necessárias somente três), entre parentes, amigos, padrinhos e até a irmã da ex-mulher.

A ex não entrou com o processo junto, visto que para ela não fazia diferença a nulidade. Mas, quando comunicada por Clauidinei, disse que aceitaria dar seu depoimento, desde que não fosse necessário falar muito de sua vida pessoal.

A nulidade do casamento dos dois entrou com duas cláusulas: imaturidade – eles casaram quando Claudinei tinha 24 anos e ela 18 – e o fato dela não acreditar no matrimônio para sempre.

As testemunhas deram os depoimentos, mas, quando chegou a vez da ex-esposa, ela não queria mais falar. Até que um dia, depois de meses enrolando, o pároco de Rondonópolis, onde ela estava morando, foi até o serviço dela, conseguiu que ela afirmasse não acreditar no matrimônio para sempre e assinou o documento.

“É importante frisar que a igreja católica não separa e que a carta de nulidade é concedida aos casamentos que não foram válidos. É igual padre, ele vai lá, faz a ordem e depois se encanta por uma mulher e quer deixar a batina. É possível, mas é o papa que dá essa liberação. Ele não deixa de ser padre, vai ser padre até morrer, mas ele vai deixar de exercer o ministério dele para viver com a família”, disse Sônia.

nulidade do casamento
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

A espera

O processo foi demorado e doloroso. Valéria chega a dizer que a espera foi “desesperadora”. Ela não gostava de estar em segunda união, queria comungar. E, aos poucos, Claudinei, que não era tão praticante quanto Valéria, foi se aprofundando na fé.

Valéria contou que a espera os fez conhecer uma fé mais concreta, menos romântica. Inclusive, aprenderam a comungar espiritualmente, agradecendo a Deus pelas pessoas que podiam comungar.

Porém, embora pedissem em oração, a carta de nulidade não saia. Já tinham dois anos juntos e o processo estava parado. Eles participavam de um grupo de casais na igreja e em um encontro uma amiga da igreja disse a Valéria que Deus a estava dizendo que eles precisavam viver a castidade.

“Estávamos com dois anos com o pedido de nulidade e o negócio meio que estava parado. Aí ela falou para mim: ‘mor, as irmãs estão falando que a gente tem que entregar um voto de castidade até a carta de nulidade sair mesmo’. Falei: ‘está dois anos esse negócio, agora vai ter abstinência? Negativo, se falou com você, vai falar comigo também’”, contou Claudinei.

Ele pediu e Deus mais uma vez respondeu. Na mesma semana, Claudinei sonhou com São José. Ele não conhecia a história do esposo de Maria, que a acompanhou durante toda a trajetória e foi o padrasto de Jesus, mas foi contar o sonho ao padre, que o lembrou que São José foi um grande casto.

“Nós fizemos um voto de castidade, por livre e espontânea vontade, Deus nos mostrou, nos convenceu. Aí nós procuramos o nosso confessor na ocasião, que era padre Edmilton e depois padre Reginaldo, os dois nos ajudaram nisso. Aí eles falaram: ‘Olha, tem muitos casais na igreja que fazem, mas isso é muito pessoal e a igreja não obriga, depois que já tem vida de casado principalmente’”, disse Valéria.

Os padres explicaram como eles fariam e os dois começaram a viver a castidade. Passaram a rezar mais, se conhecer mais. Nessa espera, recuperaram as etapas que haviam pulado, visto que começaram a morar juntos com três meses de relacionamento. E, mesmo dormindo juntos, viveram o voto por dois anos.

Segundo os dois, era o que faltava e Deus foi reconstruindo todos os aspectos da vida deles depois da escolha da castidade.

“A resposta de que realmente foi uma inspiração de Deus, que a gente vê claramente, foi uma vez que, orando, uma irmã nossa falou assim: ‘Valéria, o Senhor fala que a declaração de nulidade do Claudinei está para sair, vocês podem já começar a organizar a cerimônia do casamento de vocês, a parte prática’”, contou Valéria.

Eles não queriam festa, mas queriam uma celebração. Mesmo ainda sem a carta de nulidade, começaram a pagar o buffet, a lua de mel e todas as custas do casamento. No dia 13 de maio, dia de Nossa Senhora de Fátima, Valéria ligou em São Paulo, já havia se tornado amiga da responsável do setor, e ela afirmou que a carta tinha saído e a correspondência estava a caminho.

nulidade do casamento
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

O casamento

Claudinei precisou passar por uma psicóloga da igreja para conseguir a autorização para se casar novamente. Ela precisava atestar que ele tinha entendido o real significado do matrimônio.

Em outubro os dois foram atrás do padre Edmilton, visto que queriam que ele, junto ao padre Reginaldo, celebrasse a união dos dois – ambos tinham acompanhado toda história.

O padre disse que uma boa data seria o dia 18 de outubro e os dois saíram da Catedral felizes em saber que estava marcado. Porém, descendo as escadas, lembraram que não era uma boa ideia, dia 18 de outubro era a data de nascimento da ex-mulher.

“Voltamos para dentro da igreja e falamos ‘padre, não dá para ser essa data, senão vai ser ‘ta vendo, me amava tanto que colocou na mesma data’’, foi essa visão que a gente teve. Ai o padre Edmilton foi tão sábio que falou assim ‘para você ver como Deus faz tudo muito perfeito, não é mais a data do aniversário da sua antiga esposa, agora é a data do seu matrimônio, até isso ele substituiu’”, lembrou Claudinei.

No dia 18 de outubro de 2013, enfim, Claudinei e Valéria se casaram. Ela voltou a ser ministra da igreja, ele voltou a ser catequista e coordenador da catequese. Hoje, pais da primeira filha de Valéria, a vida dos dois é estar em grupos de orações e testemunhar que se for a vontade de Deus, ele realizará.

Serviço:

Diversas paróquias de Cuiabá possuem o setor de casos especiais para montagem dos processos de nulidade dentro da pastoral familiar. Uma delas é a Paróquia Nossa Senhora Aparecida, cuja o horário de funcionamento é das 8 horas às 11 horas. Dúvidas podem ser tiradas pessoalmente (na Rua E5, nº 121, Bairro Nossa Senhora Aparecida), ou por telefone, através do número (65) 3661-3547.

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