Com o advento da internet, das redes sociais, dos celulares com câmera fotográfica e de vídeo, do fácil transitar de informações, tanto úteis quanto banais, diversos folhetins cibernéticos ávidos de clicks souberam – e sabem – explorar as rixas que surgem e desaparecem como uma tempestade de verão entre artistas de todas as categorias.

Assim ficamos sabendo quase em tempo real que o artista A disse alguma coisa e o artista B retrucou, normalmente não de forma muito cordata; emersa a “polêmica”, o artista C dá o palpite que não foi pedido e as turbas de fãs alucinados ou de meros sectários, a depender do tema, iniciam uma batalha campal – virtual, evidentemente – se afiliando a este ou àquele artista.

Em seguida, recolhidos do solo os perfis abatidos e os despojos de guerra, segue-se a sessão de “cancelamento”, nome modernoso para “Belém-belém-nunca-mais-fico-de-bem”, mas com conseqüências bem mais amplas, nocivas e irracionais.

É neste momento que me pego a pensar sobre a maneira como os artistas (e aqui incluo todas as artes), ou ao menos alguns deles, lidavam com desaforos, insultos, ofensas rasteiras, provocações ou mero dissenso extremo e público: duelo! Claro que havia em maior profusão os que se limitavam por preferência, natureza e índole aos duelos oral e escrito. Mas aqui tratemos do duelo físico.

Já tive a chance de tratar do assunto em outra oportunidade, há quatro anos, e não pense o leitor que é alguma fixação por duelos, malgrado o caos e subversão da ordem mo façam conjecturá-lo novamente diante da realidade em que nos encontramos, como seria se assim fosse.

Pois bem. Sobre artistas e duelos, um caso curioso, dentre tantos, é o ocorrido entre os escritores italianos Giuseppe Ungaretti e Massimo Bontempelli; o primeiro, um dos maiores exponentes da poesia italiana do Século XX; enquanto o segundo um escritor surrealista de menos prestígio literário.

A quizumba começou com escritos e contra-escritos nas páginas do “Italiano” prosseguida nas do “Il Tevere” a ponto de gerar uma altercação vivaz entre ambos nas imediações do Caffè Aragno – um dos principais redutos de encontros de artistas nas primeiras décadas do 1900 na Cidade Eterna.

Claro, havia casos e casos. Porém, pelos mais elevados padrões de honra da época, se xingassem a mãe (o que talvez não se fizesse publicamente com a facilidade e leveza com que se faz hoje) não cabia atacar à traição ou apenas sair no braço como um marinheiro inglês bêbado no porto de Hong Kong em 1873, que se dirá de expor no Twitter. 

Como se resolviam as coisas de forma, digamos, drasticamente civilizada, se fosse possível esse oxímoro? Duelo. Cada qual com sua arma, regras rígidas de combate, padrinhos, juízes, limites e uma causa clara e justa; ali se jogava a honra, não a violência pela violência para a violência e de forma gratuita – mesmo que talvez o duelo por ela fosse precedido. Sim, soa muito estranho para o Homem de 2022.

Aliás, de se notar que o Duelo era muito mais usual entre as classes mais abastadas econômica e culturalmente em relação ao populacho que, como o marinheiro inglês bêbado no porto de Hong Kong em 1873, resolvia-se ali, na hora, sague quente, entre taponas, acutiladas e eventuais disparos, ou, eufemismo, um duelo rústico.

A honra, quando ainda era bem vista pela sociedade, valia muito. Logo, neste contexto, o conceito de duelo não era uma banalidade gerada por qualquer situação de desagrado, “me senti ofendido” (alô, millenials floquinhos de neve!) ou “mero dissabor”, como dizem hoje os magistrados ao negar ocorrência de dano moral.

A questão era séria, não tratada de forma egoísta no sentido de um capricho banal injustificado pela hipertrofia mimada do Eu, mas segundo os padrões morais comuns à população que justificavam a excepcionalidade dos duelos como medida estertorante para pôr fim à uma celeuma. Assim, não havia estímulo aos embates, muito pelo contrário. 

Pois então, os duelos já eram proibidos pelas leis civis em praticamente em toda a Europa, sendo também vedado pelas leis da Santa Madre Igreja de forma expressa desde 1582, Ad tollendum de Gregório XIII. Isso não significava, todavia, que não ocorressem, desde que longe de olhos curiosos, intriguistas e alcoviteiros. 

Há inúmeros duelos famosos e memoráveis envolvendo personalidades históricas e, sobretudo, artistas: Aleksandr Pushkin vs. Georges d’Anthès (cunhados entre si e embate fatal para o grande escritor), Mark Twain vs. James Laird (o duelo que não foi, para a sorte do escritor), Édouard Manet vs. Louis Edmond Duranty (dois, agora, ex-amigos e com Émile Zola como “segundo” de Manet), Olavo Bilac vs. Raul Pompéia (a farsa dos fracos), Alexander Hamilton vs. Aaron Burr (O Federalista e o futuro vice-presidente americano), Andrew Jackson vs. Charles Dickinson (o primeiro seria presidente dos Estados Unidos), Marcel Proust vs. Jean Lorrain (mais um escritor), Salvador Allende vs. Raul Rettig além dos notórios duelistas de esgrima como John Smith (explorador e escritor), Benito Mussolini e Fëdor Ivanovic Tolstoj.

Mas tornemos ao Ungaretti vs. Bontempelli.  Em tal contexto cultural, se já não bastasse o envolvimento de dois escritores amplamente conhecidos, quem hospedou o duelo foi ninguém menos que Luigi Pirandello, uns dos maiores, se não o maior, escritor siciliano de todos os tempos, autor, entre outros, dos romances L’esclusa (1901), Il fu Mattia Pascal (1904), Uno, nessuno e centomila (1926) e peças teatrais como Sei personaggi in cerca d’autore (1921) e Enrico IV (1922), esta última recomendo vivamente conjuntamente a L’esclusa e Mattia Pascal.

Nos jardins da Villa Pirandello, então praticamente nos arrabaldes de Roma, no sempre escaldante verão romano em pleno agosto de 1926, se desenvolveu o desafio, imortalizado em algumas fotografias ainda hoje disponíveis.

Apesar do desacerto entre os duelistas que os levou a se baterem, o clima era leve, porque a resolução da questão se daria al primo sangue (em oposição ao duello all’ultimo sangue); tão logo a espada de um fizesse brotar o sangue do outro, o duelo seria interrompido com decretação do vencedor e do vencido.

E assim foi; mesmo de gravata – à elegância não se abria exceções, mesma mentalidade que levava ao duelo –, sob os olhares desinteressados de um espectador, talvez por se tratar de um duelo “morno”, os escritores jogaram sua honra por sua honra, tendo Bontempelli, após algumas trocas de golpes, vencido o desafio ao penetrar a lâmina de sua striscia por três centímetros no antebraço direito de Ungaretti. Lá estava o primeiro sangue, consumatum est.

Como o pretendido: resolvida estava a questão “dando-se quitação recíproca” por tais meios. Ambos se reconciliaram após o episódio. Quem sabe até mesmo na confraternização ocorrida logo após o duelo, se se pode usar tal nomenclatura em circunstância assaz peculiar.

Mas voltando ao assunto inicial, se o duelo fosse uma possibilidade de honra, estariam estes artistas se ofendendo gratuitamente em público? Seria a possibilidade de um embate direto e imediato um estímulo ou um desestímulo ao comportamento digitalmente tão belicoso quanto desaforado? Nunca saberemos.

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Fernando Henrique Leitão é advogado atuante no Direito Ambiental, professor universitário e membro do Instituto Caminho da Liberdade – ICL-MT.

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