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Nesta terra, a dor é grande e a ambição pequena

Nós, brasileiros, invertemos os sentidos de sucesso e felicidade

8 minutos de leitura
Nesta terra, a dor é grande e a ambição pequena
Molly Seidel: exemplo de superação num país que valoriza a superação (Foto: Kevin Morris)

Uma jovem de 25 anos, que nunca tinha antes corrido uma maratona profissional, classificou-se na semana passada para ser uma das três atletas americanas que vão competir pelos EUA nas Olimpíadas de Tóquio.

O nome da até então ilustre desconhecida, Molly Seidel, agora certamente vai passar para a história do atletismo mundial, depois de chegar em segundo lugar na corrida classificatória de Atlanta.

Mas o impacto da história de Seidel não está em sua vitória recente. Seidel lutou muito para alcançar seu sonho. Ela tinha de sobra o que os americanos chamam de ambição, sem conotação pejorativa, e que nós, no Brasil infelizmente fomos ensinados a desprezar.

Acidente e depressão

Molly Seidel foi uma atleta excepcional quando estava no ensino médio, em seu estado natal, e depois como aluna bolsista da Universidade de Notre Dame. Ganhou vários prêmios estaduais e nacionais como atleta de corrida cross-country e pista nos 10 mil, 5 mil e 3 mil metros. Mas antes de conquistar o sonho olímpico, sofreu um acidente que a afastou do atletismo, enfrentou depressão e desordem alimentar. Poderia ter desistido do esporte.

Ela então se mudou para Boston com a irmã onde passou a viver uma vida sem glamour, trabalhando em dois empregos simples, como barista e baby-sitter. Mas Molly sabia que o sonho olímpico era parte dela e continuou treinando, mesmo no clima inclemente de Boston, apesar da vida dura.

No ano passado, ganhou a credencial para competir na maratona de Atlanta depois de chegar em terceiro numa meia-maratona. Com um tempo de 2 horas, 27 minutos e 31 segundos, (que poderia ter sido até menor se ela não tivesse feito uma curva para high-five a irmã), nem ela mesmo acreditou quando percebeu que estava à frente do grupo de elite na corrida de Atlanta.

Cultivo e perseguição de sonhos

Permita-me agora  propor uma análise cultural. Molly foi criada num ambiente onde é dever do cidadão cultivar e perseguir sonhos pessoais. A palavra ambição não tem uma conotação negativa como tem para nós, tupiniquins, mas é vista como uma virtude.

Na ideia americana de sociedade, cada pessoa nasce portadora de dons pessoais únicos – e perseguir a excelência na utilização desses dons para o benefício de todos é uma obrigação. Seja a vontade de fazer o melhor pastel de frango do bairro, a de tocar Chopin no piano como um virtuose, ou correr uma maratona em tempo olímpico,  as ambições pessoais são louváveis.

Seu lugar ao sol

Numa sociedade assim é seu dever achar o nicho onde seu talento é apreciado e desenvolve-lo o melhor que pode. Nesse sentido amplo de dom e ambição, ninguém nasce para a mediocridade. Você sempre vai achar seu lugar ao sol, dedicando-se à excelência numa tarefa qualquer.

Podemos dizer, que nós também no Brasil admiramos o talento, a capacidade que alguns desenvolvem de fazer algo bem feito. Sim, mas os sentimentos são diferentes. O que o  americano admira é a perseverança e a dedicação, não é o talento em si mesmo.  Parece que eles nascem sabendo que a “sorte” ou o destino, como chamamos na América Latina, não são predeterminados, mas têm que ser alcançados com esforço. Talento você nasce com ele, mas o esforço para torna-lo util a todos é um trabalho seu.

Um entre nós

Aí é que a cultura americana propõe um paradoxo interessante. Para complicar um pouco mais a questão, eles sabem que a felicidade – nesse sentido bem cultural de busca do sonho – não se encontra na excepcionalidade. A realização pessoal que você encontra no exercício de seus dons é essencial mas não vai te conduzir à felicidade.

A felicidade do sonho americano é representada pela imagem da simples casinha classe média com a cerca de madeira branca na frente (the white-picket-fence), habitada pela família nuclear: o pai, a mãe e os filhos.  Ou seja, o sonho é o amor, a estabilidade econômica e familiar.

Observe que é assim que todo filme de ação americano começa. A família acorda de manhã tomando café com panquecas na cozinha, o pai rola no chão brincando com os filhos, dá um beijo sensual na esposa e vai para o trabalho, até que a paz é interrompida e a ação do filme começa.

Ao nos mostrar uma janela para a vida “normal” do herói, o narrador o estabelece como uma pessoa com princípios e valores estáveis.

O herói americano é a pessoa coletiva que construiu a sociedade americano. O herói não é excepcional, ele é apenas um entre nós. Esse cidadão comum, o “Zé das Couves”, como nós nos referimos pejorativamente, é quem entra na cabine para tirar os óculos e o terno e se transformar no Super-Homem.

Sucesso vs. felicidade

A distinção entre sucesso pessoal e felicidade é muito importante para entendermos a cultura americana.  Sucesso, nesse ponto de vista americano, é sua obrigação moral para com o Deus que te criou e  te concedeu dons. Não é um sucesso para o enriquecimento,  pode se tornar fonte financeira, e o melhor é que assim seja, mas o dinheiro não é o alvo.

A equação é mais ou menos esta:

talento + esforço + amor ao próximo = sucesso

O esforço para alcançar a excelência  te aperfeiçoa. É nesse esforço, para Molly Seidel no dia-a-dia de dois empregos e nas corridas pelas ruas geladas de Boston,  que a pessoa se distingue, se individualiza e serve ao interesse coletivo.

Uma vez alcançado, o sucesso te realiza, mas não te torna feliz. A felicidade, você não atinge na individualização. O que vai te tornar feliz, é o contrário da busca da individualização, é a  “compliance” ou conformidade, palavra que pra nós é pejorativa. Se conformar à vida em família, rotineira e sem excessos, para o americano é um ato moral e de amor a si próprio.  Você alcança a felicidade aprendendo a estar contente na vida considerada por nós brasileiros como comezinha, a vida familiar das obrigações diárias.

compliance + contentamento+ amor a si mesmo= felicidade

Inversão brasileira

Parece-me que no Brasil nós invertemos os termos destas equações. Ter sucesso como indivíduo, para nós não é uma grande coisa – e buscá-lo à custa de muito esforço e sofrimento pessoal é bobagem, ou coisa de maluco obcecado.

Que mãe ou pai brasileiros não teriam dito para Molly Seidel: “Desiste minha filha, seu tempo passou, procure um emprego melhor e esqueça dessa coisa de ser atleta olímpica. E se tivesse de ser, já teria sido”.

Usamos termos pejorativos para classificar aqueles que “querem ser melhores que os outros”. A sorte te escolhe, não é você quem a busca. Acreditamos que, se você tem sorte, ela te cai em cima. Quem cedo madruga não tem o favor de Deus. Conforme com a sua mediocridade, parece nos dizer a cultura.

A felicidade, no entanto, você vai encontrá-la na transgressão. São as festas, a cachaçada, passar as noitadas com os amigos, transar com a mulher do vizinho no banheiro da empregada durante uma festa, são estas coisas, estes pecadilhos, que vão tornar suportável a sua medíocre existência familiar.

Brasilidade medíocre

Voltando ao Caetano, meu filósofo favorito da brasilidade, na música “Luz de Tieta” que é o título deste artigo, “todo dia é o mesmo dia, a vida é tão tacanha” – o dia a dia é uma repetição sem graça, não tem propósito em si. Nesta terra onde a dor é grande e a ambição pequena, o “eu-ideal” é o transgressor e, o “nós-ideal”, é o medíocre, o José-Ninguém.

Veja o niilismo absoluto do cantor: Não existe nada de novo sob o sol, a vida vivida na rotina é nada. Nada prospera, nada muda, é tudo escuro, até onde eu me lembro, é tudo uma dor que é sem igual. A única coisa que me resta é ficar espreitando da janela a vida sexual daqueles que se libertaram da escravidão moral: Todo mundo quer saber, com quem você se deita, nada pode prosperar. O autor da canção encontra na solução existencialista a “cura” para seu niilismo.

Tenho que concordar com o cantor. Neste projeto cultural onde o esforço é inútil e a vida comum um tédio, tudo o que resta é se transformar no herói nietzscheniano, no caso aqui a Tieta, que cria sua própria moral e vive brilhando no sol de suas próprias regras.

Mas o pior é que sabemos onde esse projeto termina. Já vimos esse filme antes, tanto no sentido coletivo na Alemanha de Hitler, como na vida de inúmeros protótipos de Tietas, infelizes e solitários.

Melhor do que aceitar esta sina niilista seria aceitar que nos faria bem aprender o binômio americano de felicidade: esforço e contentamento, a fórmula judaico-cristã que não fica velha nunca.

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