O caminho das águas dos rios Cuiabá e Coxipó, estudadas pela historiadora Neila Barreto, norteou Bandeiras levando-as ao encontro de territórios bororos, onde portugueses se deslumbraram com a possibilidade de explorar riquezas minerais. A notícia da descoberta de ouro alvoroçou São Paulo e, na medida em que jazidas eram reveladas – não só na prainha, mas em morros como o do Rosário, onde se ergueria a Igreja N. S. do Rosário e São Benedito – aventureiros foram atraídos a povoar a vila que se tornaria capital mato-grossense.

Mas isso na primeira metade do século XVIII. Após séculos e ciclos de exploração mineral chegamos ao XXI e o imaginário de uma cidade ligada ao ouro ainda resiste na região central de Cuiabá – onde se espalham placas e lojinhas que dizem comprar, vender, fabricar e consertar peças com o material. A curiosidade, para além do porquê, se dá em como se vive do ofício em pleno 2018.

A maioria, cuiabanos (ou quase), são remanescentes da atividade garimpeira ocorrida na Avenida do CPA na década de 1980. “Ali próximo à 13ª Brigada da Infantaria Motorizada”, contam alguns deles. Foi onde o ourives Ronaldo, 44 anos, começou. “Entregando cartãozinho aos 12 anos”, conta.

Segundo relatórios sobre a produção ourives em Mato Grosso, estudados pelo geólogo Jocy Gonçalo de Miranda, mais de 80 centros de produção de ouro se encontravam em plena atividade em 1984, onde se conseguia levantar um volume de 400 quilos mensais, controlados por empresários do garimpo. Um deles, o garimpo do Jatobá, localizado a 30 km de Cuiabá, atraiu mais de 3.000 pessoas. Em 1991, foram cadastrados, na Baixada Cuiabana e em Poconé, 1.278 garimpeiros e uma população de 3.597 trabalhadores ligados ao garimpo.

A rotina de Ronaldo no comércio de garimpo durou uma década. Assim como ele – hoje instalado na esquina da Rua Campo Grande com a Engenheiro Ricardo Franco –, os ourives cuiabanos ainda se concentram no Centro Histórico de Cuiabá.

Ronaldo, ourives (Foto: Luzo Reis)

Depois foram mais seis anos comprando ouro em peça e, durante todo esse período, Ronaldo aprendeu a fabricar e a consertar joias, atividade praticada há 30 anos, por falta de opção. Além do mais, era o que se comercializava na época: “1983, 1984… Até 1990 foi bom, depois veio aquela crise do Plano Collor”, lembra. Atualmente, já não compra e nem vende. “Só uma ou duas gramas de ouro de peça, porque sempre tem que ter”.

Mas há quem só trabalhe com o comércio, como faz Maciel Alegre, 65 anos, quase na esquina em frente. Posa na cadeira estacionada na porta da lojinha: compra-se ouro. Trabalhando sozinho, adquire peças “do pessoal da rua”, como ele diz, e, em frente a uma balança, as revende enquanto exibe imagens das joias que já não fabrica mais. Panca de personagem mafioso, óculos escuros para a foto, diz que tem outras lojas por perto só para a fabricação. Desses “causos” que não se sabe se é lenda ou realidade, ele também conta que tira quase R$ 7 mil por mês.

Paraguaio, Maciel veio para Cuiabá (MT) vindo de Porto Murtinho (MS) e por aqui ficou. Era jogador de futebol em time de Campo Grande, onde atuou por dois anos, e, depois, no Operário de Várzea Grande, por quatro. Por conta da comunicação custosa, sequela de derrame, ele se limita a dizer que não deu certo no esporte por causa da idade. Como aprendeu a mexer com ouro? “O rapaz pegou eu e falou ‘vambora trabalhar’”, conta, sem muito explicar.

Já Ronaldo pouco fabrica e mais conserta, especialmente por atacado, para duas relojoarias no calçadão do Centro. Com uma ele acerta semanalmente; na outra quinzenalmente, por quantidade de peças. Fora isso, da rua aparecem uma ou duas correntes para soldar, uma e outra aliança para arrumar. “Mas é muito barato, tem que fazer bastante para pegar alguma coisa no fim de semana”, ressalta.

Diminuir ou aumentar uma corrente é trabalho de meia-hora, as vezes duas ou três horas de serviço monetizado entre R$ 5 e R$ 15. Para fabricar a peça é de um dia para o outro e os preços variam do serviço e do tamanho da peça, ele explica.

“É um ramo para sobrevivência. Aluguel, luz, água e comida. Tem que ter alguma coisa para complementar, se não é difícil. Se eu tivesse, eu estava tranquilo e se eu arrumasse um lugar fixo para trabalhar, eu parava”, conta.

Sebastião Tadeu (Foto: Luzo Reis)

Sebastião Tadeu, 63 anos e aparência de 50, é outro cuiabano, ourives há mais de três décadas; são 20 anos no mesmo ponto da Travessa Vinte Quatro de Abril, cortando o quarteirão entre as ruas Campo Grande e Pedro Celestino – mas sempre naquele pedacinho. Era bancário e tinha 27 anos quando, desempregado, aprendeu o ofício com um primo, segundo ele, um dos pioneiros na região.

Aprendeu rápido, gostou e ficou. “Achei muito interessante derreter aquelas barras de ouro e as transformar em joia. Naquele tempo [década de 80] era muito bom, tinha muito serviço e o pessoal gostava muito, não tinha problema. Hoje as pessoas não querem mais mexer com isso por medo de assalto. A população era menor, mas todo mundo usava”, contextualiza.

A diminuição do uso das joias, para Tadeu, se dá apenas pela insegurança e não por falta de interesse nos serviços, que ele acredita ser atemporal. “Não sei se é por causa da crise… Mas esse ano está bem parado”, especula. “No começo a gente ficava nos fins de ano até de madrugada fazendo peça para cliente que queria presentear com joia”, lembra.

Tadeu também não compra, nem vende – um legítimo artesão de ouro e prata. Sua loja é uma fábrica completa e os equipamentos são relíquias. Na máquina de fundição, ele derrete o material para levar à laminadora, onde “puxa o fio” de correntes, anéis e qualquer outra peça. “Tudo tem que passar por aqui”, mostra. A forma ele finaliza num “arredondador”.

Quem mais demanda os serviços de Sebastião Tadeu são os comerciantes que revendem joias de casa em casa. Quando chegamos em sua loja, ele acabara de atender um. “Os lojistas compram mais de indústria por atacado e nós compramos quando precisa para trabalhar ou o próprio cliente traz o ouro pra gente”, explica.

“Eles [comerciantes de rua] já têm essas pessoas que ligam para comprar, mas já diminuíram bastante também, por medo de assalto”, completa. Naquela mesma semana, ele só havia recebido clientes fieis, além de um ou outro comprador novo. “Eu tenho uma cliente que trazia joia todo dia para consertar, uma japonesa. Ela foi assaltada três vezes e hoje em dia é difícil ela trazer”, conta.

Apesar dos percalços, Tadeu diz que a ocupação é tranquila e sempre tem alguma procura. Com o ofício, ele sustenta a casa que a esposa toma conta, já criado seus dois filhos, de 30 e poucos anos cada. A moça é motorista de coletivo em Nova Olímpia e o filho faz faculdade e estágio em Várzea Grande. O rapaz ele ensinou o ofício, mas nenhum deles se interessou pelo ramo.

Antônio (Foto: Luzo Reis)

Na mesma travessa, o ourives Antônio utiliza ferramentas que comprou aos 18 anos, um ano depois que aprendeu o ofício em Rondonópolis com o irmão que, por sua vez, aprendeu em Alto Araguaia. Ele é mato-grossense, mas se considera italiano, origem da geração dos bisavós.

“Você coloca porcos para dar cria no meio dos bois, vai nascer bezerro ou leitãozinho?”, justifica, cheio de tiradas.

Magrinho, franzino e contador de histórias, Antônio não quis saber de conversar sobre a rotina atual e, em meio a pedras, ferramentas e lembranças, contou que já experimentou várias ocupações, de funcionário de “fábrica de trator” a investigador de polícia, profissão que atuou como estagiário, perambulando em busca de soluções. Sempre sozinho, como se mantém em sua loja depois que o companheiro de serviço faleceu.

“Aqui é só para sobrevivência. Não tenho do que reclamar”, afirma, assim como Tadeu. Somente reclama da insegurança, aliás isso o deixa enfezado. Por comportamento indignado, ele quase foi preso por desacato ao falar “umas verdades”, pois, “conhece a legislação do começo ao fim”, diz. Frustrado com o Direito, abandonou o curso faltando quatro meses para pegar o diploma.

Sua verdadeira paixão é o garimpo.

“Compra?”
“Não. Lavo o cascalho, tiro o cascalho”.
“O senhor é garimpeiro mesmo então?”
“Garimpeiro”.
“Até hoje trabalha com garimpo?”
“Quando eu tenho tempo, eu tô no garimpo”.
“Esse que teve em Pontes e Lacerda, o senhor esteve lá?”
“Onde tem fofoca eu não vou”, disse, sempre com uma resposta na ponta da língua.

É que, na verdade, os garimpos de Antônio são mais “familiares”. Ele nunca esteve em um desses grandes, que mobilizam multidões. A atividade para ele é um hobby. Em suas palavras, faz por brincadeira, é quase um esporte. Pivete magrinho, ele mergulhava atrás de preciosidades, à época, no município de Itiquira, desde os 12 anos. “Toda vida eu fui magro”, conta. Por isso, o pai fez uma canoinha e o cunhado o desafiava.

Materiais do Ronaldo (Foto: Luzo Reis)

Tirava cascalho do fundo d’água numa bacia furada, como “ralo” para peneirar. Enchia um saco de açúcar até a metade com uma primeira leva de cascalho, fechava as bocas e amarrava ao meio “tipo uma pamonha”. Desafiando a gravidade, vestia para o peso fazer mergulhar. “Às vezes colocava a mão para cima e não sobrava nem a ponta do dedo”, lembra, divertindo-se. Atualmente, num dos rios que acompanham a estrada de Chapada dos Guimarães, ele cata ágatas.

“Dá trabalho?”
“Dá, mas é o trabalho que faz a gente crescer na vida”.
“E o que o senhor garimpa, vende?”
“A gente pega é pouquinha coisa mesmo. Se achasse um diamante… mas não acha”.

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