Na semana que passou vinha de Juína, de carro, e logo na saída da cidade passamos por uma enorme boiada que vinha sendo tocada por alguns peões. Montados em burros, com seus lenços para cobrir o pescoço da poeira das estradas de chão batido, vinham lentamente. O nosso carro seguiu a boiada que estava sobre uma parte alta da estrada. Até que passasse, o gado seguia o seu ritmo de passo a passo, e nós o seguimos.

Silêncio resignado. Passo de quem não sabe pra onde vai. Boiadeiros repetindo o longo ritual de amanhecer, caminhar, anoitecer, amanhecer…

Não pude deixar de me transportar no tempo para três boiadas em minha vida. A primeira, lá pelos meus oito anos, em Minas Gerais. Na casa de minha tia Maria, que ficava às margens de uma estrada naqueles confins de Minas, tinha uma porteira. Ali tem um ritual. O capataz da comitiva posta-se montado ao lado da porteira de modo a passar só um animal por vez. E conta nos dedos. É uma engenharia fantástica como ele conta. Usa os dedos da mão, as falanges e os punhos numa velocidade incrível. Conta o gado a cada porteira para evitar alguma rês extraviada. Se houver, dá tempo de voltar e procurar. Na época não entendi sua máquina de calcular…

Ouvindo o berrante que faz parte do ritual antes das porteiras, meus primos e eu corremos para abri-la na esperança de ganhar uma moeda. Ganhamos uma moedinha e ficamos de longe vendo o gado passar. Berrantes vibrantes cantando sons que só o gado e os tropeiros conseguem decifrar. Aquela boiada nunca me saiu da cabeça.

Anos mais tarde, já morando em Mato Grosso, viajei de carro para Nova Xavantina e Canarana, lá pelos anos 1980. Roberto de Francesco e eu. Éramos da Revista “Contato”, um fenômeno editorial na história da imprensa de Mato Grosso. Na ida, saímos de Barra do Garças às 4 horas da madrugada na esperança de conseguirmos almoçar em Nova Xavantina, distante 180 quilômetros. Ruim a rodovia BR-158 de então. Próximo de uma localidade chamada Paraopeba, a rodovia segue por um longo aterro porque é pantanoso o trecho ao redor. De longe avistamos a poeira de uma boiada seguindo pela estrada. Coisa comum por ali até hoje. Quando a alcançamos, o peão que carrega uma bandeira vermelha de sinalização nos pediu compreensão porque demoraria pelo menos uma hora pro gado passar pelo aterro. Roberto era bem humorado. Sempre gostei de boiadas. Seguimos em paz o cortejo de mil bois lentamente naquele estradão coberto de poeira.

Ao final, a boiada se espalhu no campo. O capataz nos pediu uma carona até o povoado de Paraopeba para comprar um remédio para o resfriado causado pelas noites frias ao relento e pela poeira do estradão. Foi conosco. Boa conversa. Marcamos pra uma conversa na volta e uma reportagem pra “Contato”. Ele nos mostrou o lugar onde a boiada e eles dormiriam naquela noite. Uns 10 quilômetros à frente do aterro onde a alcançamos.

Fomos a Nova Xavantina e voltamos sem ir a Canarana. Uma ponte caída na rodovia. Coisa comum por ali. Escurecendo, alcançamos na volta o lugar do pouso. Lá estava a boiada esparramada num pasto e os peões fazendo janta. Outros tomavam banho num córrego de água gelada. Tiravam a poeira e voltavam ao acampamento. Esquentavam o frio com pinga. Jantamos com eles lá pelas sete horas da noite. O céu na região do Araguaia é especialmente belo. Conversa, pinga, estórias. Apareceu um violão e desafinados cantores-boiadeiros desfiaram velhas canções.

Jantamos arroz com carne, macarrão e uma farofa. Arroz fumegando. Cheiro bom de alho. Abusei. Comi encantado. Lá pelas 9 da noite eles começaram a espreguiçar. Sinal de sono. Dia inteiro montado no lombo de burro é duro! Nos despedimos e seguimos viagem pra Barra do Garças. Noite de lua cheia. Viagem boa. Na volta escrevi uma reportagem contando estórias que ouvi. Belíssimas fotos em preto e branco feitas pelo Roberto de Francesco que, infelizmente, já nos deixou. O título: “Boi na estrada”. Muitas cartas à redação e muitas recordações nelas contadas.

A terceira boiada foi recente, na mesma região, entre Água Boa e Campinápolis. Dois dias montado em burro. Eu e o jovem e excelente fotógrafo Felipe Barros. Mas fica pra outra estória…

Assinatura Coluna Onofre

 

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