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Mata, mas não xinga

Fernando Henrique Leitão escreve sobre a majoração da pena a crimes contra a honra cometidos na internet

6 minutos de leitura
Mata, mas não xinga
Photo by Birmingham Museums Trust on Unsplash

No ano de 1989 o político paulistano Paulo Maluf disse, em uma palestra na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais voltada para médicos e estudantes, a que indicou como “talvez a frase mais infeliz da minha vida” e que entrou para os anais de frases – a dizer pouco! – infelizes: “Tá bom, tá com desejo sexual? Estupra, mas não mata”.  Partamos do princípio que é desnecessário asseverar que seja qual for o contexto tal frase não é aceitável.

Pois eis que 22 anos depois o Congresso Nacional revisita a frase malufista na prática de seus atos com um “mata, bata, abandona, aborta, mas não xinga”. Explico.

Certo que os congressistas nacionais não são conhecidos por serem homens de letra, dotados do bom senso comum e noção de proporção, estando geralmente mais preocupados em manter suas poltronas para as próximas eleições angariando emendas financeiras, pautas de seus grupos de pressão e conchavos de coxia.

Porém, mais uma vez se superaram ao derrubarem a Mensagem de Veto nº. 726, de 24 de dezembro de 2019 do Presidente da República acerca do novel §2º do art. 141 do Decreto-Lei nº 2.848 – Código Penal – quanto à majoração da pena de crimes contra a honra.

Referida alteração legislativa prevê ipsis litteris: “§2º Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena.”

O veto, em suma, trouxe à tona a desproporcionalidade da medida e sua incongruência legal, mas os valorosos deputados e senadores decidiram que desgraça pouca é bobagem e derrubaram o veto presidencial que diz:

“A propositura legislativa, ao promover o incremento da pena no triplo quando o crime for cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, viola o princípio da proporcionalidade entre o tipo penal descrito e a pena cominada, notadamente se considerarmos a existência da legislação atual que já tutela suficientemente os interesses protegidos pelo Projeto, ao permitir o agravamento da pena em um terço na hipótese de qualquer dos crimes contra a honra ser cometido por meio que facilite a sua divulgação. Ademais a substituição da lavratura de termo circunstanciado nesses crimes, em razão da pena máxima ser superior a dois anos, pela necessária abertura de inquérito policial, ensejaria, por conseguinte, superlotação das delegacias, e, com isso, redução do tempo e da força de trabalho para se dedicar ao combate de crimes graves, tais como homicídio e latrocínio.”

Note-se que o Veto ainda traz a questão de não ser mais possível o processamento de crimes contra a honra cometidos ou divulgados na Internet pelo Juizados Especiais, contrariando princípios constitucionais e também da Lei nº. 9.099/1995 e aumentando o caos do aparelho policial e judiciário.

Ora, mas como, então, reavivaram o “Tá bom, tá com desejo sexual? Estupra, mas não mata” em “Tá bom, tá com raiva? Mata, mas não xinga”? Simples, a absoluta falta de senso de proporção no sistema penal brasileiro em que a pena para homicídio, homicídio culposo, aborto, lesão corporal gravíssima ou até seguida de morte, abandono de incapaz etc. se torna menor que as possíveis penas máximas somadas de uma discussão vituperiosa de internet.

Com a nova pena para crimes contra a honra praticados ou divulgados na Internet aumentada em três vezes conclui-se que, para o legislador, mais vale a pena sentar a mão na orelha a xingar um sujeito. Por quê?

Eis as possíveis penas para supostos crimes contra a honra praticados, por exemplo, nas redes sociais:

  • Calúnia: até 6 anos;
  • Difamação: até 3 anos;
  • Injúria: até 1 ano e meio ou 3 anos;
  • Injúria racial: até 9 anos.
  • Total possível em uma bate-boca de internet: até 21 anos!

Além das outras formas agravadas…

Como paralelo, vejamos as penas para os crimes de lesão corporal:

  • De natureza leve: até 1 ano (arranhões e roxos);
  • De natureza grave: até 5 anos (incapacidade por mais de 30 dias, perigo de vida ou aleijamento de membro ou função);
  • De natureza gravíssima: até 8 anos (incapacidade permanente ao trabalho, doença incurável, perda ou inutilização de membro, deformidade permanente, aborto:);
  • Seguida de morte (resultado não desejado): até 14 anos.

A pena para homicídio simples é de 06 a 20 anos; infanticídio? De 02 a 06 anos; aborto pela gestante ou com seu consentimento? De 01 a 03 anos.

Homicídio culposo? De 01 a 03 anos.

Mas e outros crimes contra a vida humana, saúde e incolumidade física?

Perigo de contágio venéreo? 03 meses a 01 ano ou 01 a 04 anos; Perigo de contágio de moléstia grave? 01 a 04 anos; Perigo para a vida ou saúde de outrem? 03 meses a 01 ano.

Abandono de incapaz? De 06 meses a 03 anos; se resultar lesão corporal de natureza grave, de 01 a 05 anos; se resultar morte, de 04 a 12 anos.

Expor ou abandonar recém-nascido? 06 meses a 02 anos; se resultar lesão corporal de natureza grave? De 01 a 03 anos; se resultar a morte? De 02 a 06 anos.

Omissão de socorro? De 01 mês a 06 meses.

Maus-tratos (a humanos, já que a cães e gatos a pena é mais pesada em outro exemplo da falta de noção legislativa no país): de 02 meses a 01 ano OU multa; se resultar lesão corporal de natureza grave, de 01 a 04 anos; se resultar morte, de 04 a 12 anos.

Sem falar nas penas iniciais dos crimes de furto (de 01 a 04 anos) e roubo (de 04 a 10 anos).

É evidente a desproporcionalidade das medidas atribuídas aos crimes contra a honra que em uma única discussãozinha de Internet pode desencadear 21 anos de prisão.

Aliás, não deixa de ser irônico que ao mesmo tempo em que aumentem a sanção de crimes contra a honra o STF em decisão descompassada com a realidade afirme não mais poder ser aceita a tese de homicídio em legítima defesa da… Honra!!! Então não há mais a excludente de ilicitude por um Valor que o Sistema passou a considerar mais digno de proteção que a própria vida humana.

No mesmo passo, temos hoje movimentos para descriminalizar a produção e tráfico de drogas, já que a pena para o uso de entorpecentes é, na melhor das hipóteses, insignificante. Para assassinato de bebês no ventre das mães, mesma coisa, franco processo de descriminalização.

Na contramão vem o agravamento para fatos tidos como crimes que, quiçá exceto a calúnia, deveriam se resolver na esfera cível, não sendo merecedores de tutela penal quando há outras formas de proteção ao objeto jurídico (honra), como reza o Princípio da Intervenção Mínima no Direito Penal.

A sinalização do Congresso é clara: menos grave é sentar a mão na orelha do desafeto a cobri-lo de impropérios – sendo despiciendo ressaltar que, no mundo ideal, nenhuma das situações deveria ocorrer e nem merece qualquer estímulo, antes que algum aloprado veja a incitação ao crime. Faz-se aqui a constatação objetiva da pena pantagruélica a um crime comparada a outras ações incomparavelmente mais graves e danosas à vida humana.

Tornaremos ao tema em outro momento tratando de quem se beneficiará com esse aumento de pena, cujo uso como mordaça censória a quem não é revolucionário, progressista de extrema esquerda vem sendo chancelado pelo Judiciário; mas é assunto para outro texto.

 

Fernando Henrique Leitão é advogado, professor e membro do Instituto Caminho da Liberdade – ICL-MT.

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