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Longe de acabar, ofícios manuais se reinventam e resistem a gerações no Centro de Cuiabá

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Longe de acabar, ofícios manuais se reinventam e resistem a gerações no Centro de Cuiabá

Resistindo em ocupações de tradição centenária que encontram abrigo especialmente no Centro Histórico de Cuiabá, artífices cuiabanos misturam paixão e necessidade ao reinventar, sempre que necessário, trabalhos manuais que exercem desde a infância. Além da familiaridade de décadas com o ofício – aspecto comum a todos eles – são em sua maioria cuiabanos “pé rachado” e, coincidentemente ou não, “paus-rodados” vindos dos Estados de Minas Gerais e Goiás.

Ao contrário do que se imagina, apesar das dificuldades, para eles nunca falta serviço. É o que conta o alfaiate mais antigo da região, Silvio Soares que, aos 86 anos, está na profissão há 74. “Eu aprendi a profissão aos 12 na loja Estrela, que ficava numa esquina da Avenida Carmindo de Campos. Naquele tempo de criança, todo mundo trabalhava, trabalhava e ia na escola”, conta.

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Silvio Soares (Foto: Luzo Reis)

Naquela época, no lugar do zíper da calça, ele colocava o botão na braguilha – tudo feito à mão antes da máquina de costura para aprender; vez ou outra tirava algum real. Mas apesar das mudanças no material de trabalho e a baixa na demanda, comparada a outras épocas, Silvio conta que a procura pelo serviço ainda é estável.

“Não mudou muito, mas não é igual. Hoje está mais devagar, porque tem bastante roupa feita. Uma bermuda, que você compra por 50 reais, para mandar fazer fica mais cara. Fazer uma calça social custa caro um pano bom, 180 reais o metro, mais a mão de obra. Mas quem gosta de uma roupa boa sempre manda fazer e consertar”, explica Silvio.

De família mineira, ele já se considera um cuiabano e não é para menos, pois mora aqui há muitas décadas. Passou por várias outras ocupações, trabalhando em hotéis, restaurantes e construções como servente de pedreiro, parando vez ou outra na calça, camisa e paletó. “Corto e faço, tudo eu sei fazer”, explica.

Abriu comércio de alfaiataria na Rua Comandante Costa, onde ficou durante 10 anos e, há dois, somou trabalho e amor no ponto que divide com a atual esposa, Betina Almeida Gouveia, costureira há 48 anos. Quando se encontraram, ela veio de uma separação e ele de viuvez; na loja, ela faz roupas femininas e roupas masculinas. “Estamos nos completando legal”, conta Betina.

Silvio Soares e Betina Gouveia (Foto: Luzo Reis)

Assim como Silvio, ela é uma mineira apaixonada por Cuiabá e concorda que o ofício é quase que atemporal. “O pessoal valoriza muito o alfaiate, tem mais qualidade”, endossa. Além de cobrir as despesas financeiras que, no caso de seu Silvio, complementam a aposentadoria de um salário mínimo, o ofício traz independência, ocupa a cabeça e ajuda a manter de pé, como definem.

“Em primeiro lugar, todo mundo tem necessidade de trabalhar. Mas, numa idade como a minha, ficar sem fazer nada é sinal de que está morrendo. O trabalho também ajuda a distrair”, diz Silvio. “É uma profissão que não exige muito do físico, mais do mental, é por isso que a gente chega nessa idade firme, só uma dorzinha aqui e outra ali”, complementa Betina.

Além da esposa, Silvio tem três filhos alfaiates, frutos do casamento anterior. Um tem loja na avenida Dom Bosco, outro é engenheiro e trabalha para o Estado, mas gosta da alfaiataria. “É uma boa profissão. Desde o início do mundo, existe quem faz roupa”, crava o veterano.

Ofício de gerações

“Foi mesmo intuição, não fiz curso. O que vinha na minha cabeça eu ia cortando e fazendo desde criança. Segui por necessidade, não tive oportunidade de estudar, fui criada na roça”, conta a costureira Isabel Lopes de Oliveira, também natural de Minas Gerais, há três anos na Rua Campo Grande, em Cuiabá, e, na máquina, desde os 10 anos.

Isabel Lopes de Oliveira (Foto: Luzo Reis)

Ela chama de intuição o dom que lhe foi passado de gerações entre a família. Aprendeu com a mãe a ser costureira, e as outras três irmãs também seguiram o ofício. Então, para elas, foi quase natural que Juliana Oliveira Neves, criada ao pedal de máquina, seguisse os passos da matriarca, aos 24 anos. “Desde criança vejo minha mãe e acho incrível transformar um tecido cru em um vestido”, explica a jovem.

Juliana, diferentemente de Isabel, tem mais oportunidade no ofício, consequência de um cenário de profissionalização. Ainda este ano, ela se forma no curso superior de Design de Moda pela Universidade de Cuiabá. Confiante na costura como uma profissão, Isabel nunca se indispôs, muito menos pressionou, em relação à escolha da filha, sempre ensinando e incentivando.

“Nunca as proibi de mexer na máquina, sentar e costurar. Na minha concepção, o que os filhos quiserem aprender é para o bem deles. A mamãe ajuda, mas a escolha é deles. Tanto é que hoje é tão difícil uma jovem querer seguir a profissão de costureira né?”, reflete a mãe.

Juliana Oliveira Neves (Foto: Luzo Reis)

Sem dificuldades, Isabel cria a partir de modelos trazidos pelas clientes, sem faixa etária ou perfil padrão. Juliana também já exibe suas produções autorais nos desenhos dispostos no ateliê. São clientes novos e fiéis a cada dia que procuram tanto o conserto de peças, como a criação da roupa inteira, seja para o dia-a-dia ou ocasiões especiais.

“Melhor costureira daqui”, confia uma cliente. Seu vestido, inspirado no site Casamento dos Sonhos, foi Isabel quem fez, bordou e agora vai consertar para ser usado em uma festa.

“Costureira tem horário não, esse vestido virou a madrugada. O ateliê está sempre movimentado, graças a Deus”, afirmam elas. “Não enrica, mas fome também não passa. De Cuiabá para Minas, você monta seu ateliê e sempre tem uma barra para fazer, surge qualquer serviço”, afirma Isabel, que também já passou por São Paulo, “como ciganas”, ela brinca.

Sobre a atualidade do ofício, as alegações são as mesmas de Betina e Silvio, casal ainda mais vivido. “Eu falo que é uma área que nunca acaba, eu achava que poderia estar diminuindo, porque no Centro você compra blusa por 15 reais, mas chegam com tecido para fazer e não se importam em pagar um pouco mais”, explica Isabel.

Seguindo o exemplo da filha, Isabel vislumbra a profissionalização, desejo já antigo. “Quando eu formar minhas meninas, eu vou para a faculdade. Sonho em fazer só para desenhar, porque hoje é tudo no olhômetro, já jogo direto no tecido e sai. Se eu pegar uma caneta para riscar a roupa, eu não consigo”.

(Foto: Luzo Reis)

Uma vida de Centro Histórico

Na mesma rua e no mesmo ponto há 48 anos, Dejair da Silva Santos, 67 anos, começou dando uso às linhas e ao dom do artesanato para a fabricação de capa de revólver de fazendeiros da região. Nas últimas décadas, ampliou o negócio com o conserto de malas, pastas, bolsas, às vezes bolas de futebol, e, principalmente, mochilas para estudantes.

“Ah, hoje é bem melhor! As pessoas viajam muito. Essas leis do Lula aí ajudaram pessoal a viajar tudo fiado. Antigamente, eu ficava aí sentado esperando serviço”. Hoje é até difícil conversar sem atrapalhar Dejair em seu balcão, onde trabalha e atende a freguesia, sempre movimentado. “Tem muito serviço que a gente faz aqui na mesma hora”, explica.

Dejair da Silva Santos, “vulgo Quati” (Foto: Luzo Reis)

Como um legítimo cuiabano “de tchápa”, o “Quati”, como é mais conhecido, integra a comunidade São Gonçalo Beira Rio, onde mora com a esposa ceramista Juraci e o filho de 36 anos, “Quatizinho”. “Lá no São Gonçalo são quatro, mas ao total são oito filhos. Sempre gostei de trabalhar”, diverte-se, sorriso largo e risada alta. Os apelidos de pai e filho dão nome a duas peixarias, outro investimento da família.

De todos as ocupações da família, a loja de consertos é a mais rentável e, para Dejair, a mais prazerosa. “Meu negócio é aqui, é mais mão de obra, lá eu tenho que investir”, garante. “Aqui eu trabalho com gosto. Vem desde criança né? Tudo que eu tenho foi aqui que me deu”. Com a renda que tira do ofício, além do sustento da família, o artesão viaja uma vez ao ano, assim como os clientes, de avião. “As malas eu levo emprestada de freguês”, brinca.

O ofício ele aprendeu aos 15 anos, com um colega de serviço do pai, em uma sapataria chamada Trindade e, com o passar do tempo, vai aprendendo a lidar com as novas tecnologias e materiais. “Não fica num serviço só. Hoje tem mala de fibra que só troca a peça. A gente nunca sabe tudo”, ressalta.

Com a demanda no Conserto Silva, como a loja é chamada, ele também ensinou o irmão José Gonçalo da Silva Santos, 50 anos, com quem divide o serviço desde os 14 do caçula. Dali eles não pensam em sair: “nesse ramo é só aqui no Centro mesmo, se eu for partir para bairro já é mais complicado”.

Os irmãos José Gonçalo e Dejair da Silva (Foto: Luzo Reis)

Nem tudo são flores

“Tá acabando, fia” – foi a única sentença que destoou entre os artesãos entrevistados. Um dos poucos sapateiros independentes da região, Adão se refere à fabricação artesanal de sapatos, substituídas pela larga escala de fábricas e grandes sapatarias, onde também já trabalhou como “preparador”: cortava e costurava para outro soldar.

Mas ele teve que aprender todas as etapas para não ficar sem emprego e assim abriu o negócio próprio em meados de 1987. Na loja que mantém há 10 anos, também na Rua Campo Grande, ele só conserta. “O ofício, antigamente, era emprego certo para quem fabricava. Hoje é melhor para quem aprende a fazer consertos”, explica.

Para ele, a razão da baixa demanda que vem enfrentando é a industrialização do ofício e o consumo cada vez mais descartável. “Tem pessoas que pensam ‘não vou mexer com isso não’, vão lá e compram outro. Mas tem sapato que custa aí mais de 500 reais, o saltinho acaba e a pessoa não vai jogar fora por causa de 15 reais né? Se a gente fizer bonitinho ela volta”.

E foi assim que, com 70 anos e meia década de profissão, ele criou cinco sobrinhos – dois dos filhos de criação estão completando agora o ensino superior. Filho de lavrador e dona de casa, Adão é natural de Goiás, vindo Minas Geais. “Capaz que eu já tinha uns 7/8 anos quando aprendi”, conta com seu sotaque que denuncia as origens.

Debochado e desconfiado, ele conta que só se mantém o negócio para “não ficar doido”. “Porque tá difícil, ultimamente só tá dando despesa. O problema é que a gente não aprendeu a fazer outra coisa e vai teimando com isso. Tem vez que a gente passa apertado, tem que apagar aluguel, o menino. A gente vai até quando aguentar”.

O “menino” é Fábio que, no andar de cima, aos 31 anos, presta serviço de sapateiro. Ele faz bico de conserto para seu Adão, com quem acerta semanalmente, e, em outra sapataria, ele fabrica e ganha com comissão. Mas, diferentemente de seu empregador, para o jovem, que lida com o ofício há 20 anos, a profissão de sapateiro não deixa de ser uma escolha.

(Foto: Luzo Reis)

“Meu pai já trabalhava nessa profissão e comecei a ajudar na Sapataria São Benedito. Eles fecharam e eu não larguei mais de trabalhar com isso. Era bom se estudasse, mas não estudei. Mas não é ruim trabalhar disso aqui não”, explica.

Nascido em Rondonópolis e criado em Jaciara, em Cuiabá ele encontrou no trabalho manual um dom e um prazer. “Se eu disser que não tive oportunidade de estudar, é mentira. Meus pais não tiveram e começaram por necessidade. Criaram a gente com o ofício, mas eu gostava desde moleque, morei numa sapataria e trabalhava nela”, afirma. Questão de necessidade. Questão de escolha.

(Foto: Luzo Reis)

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