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Intervenção sem política criminal?

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Intervenção sem política criminal?

Divulgação/Assessoria de imprensa

Mauro Viveiros, Procurador do MPE

A intervenção federal na área da segurança pública do Rio de Janeiro é um momento paradigmático para a tomada de consciência sobre a necessidade de uma Política Criminal para o Sistema de Justiça Criminal do país.

O grave comprometimento da ordem pública – um dos fundamentos da intervenção federal (art. 34, III, CF), que justifica o emprego das forças armadas para a garantia da lei e da ordem (art. 142, CF) – supõe graves perigos para a tranquilidade social, não previstos no ordenamento jurídico.

Enquanto a segurança pública visa a defesa e proteção dos bens e direitos tutelados pelo ordenamento jurídico frente a riscos ou perturbações previstos normativamente, cuja atividade incumbe aos órgãos arrolados no art. 144 da CF, ordem pública, conceito muito mais amplo, é um complexo de instituições, bens e valores explícitos e implícitos na Constituição, que tanto são tutelados normativamente pelos atores do Sistema de Justiça, quanto podem ser garantidos pelas forças armadas nas hipóteses de intervenção federal (art. 34 da CF).

A excepcionalidade traz consigo a ideia de situação imprevisível ou de impossível resolução pelas vias ordinárias, a configurar uma grave incapacidade de resposta institucional. E a esse estado de coisas pode-se chegar não apenas com a emergência de fatos extraordinários, mas também por um processo de falência das instituições responsáveis pela segurança pública.

Não há dúvidas que a tomada de extensas áreas territoriais e comunidades inteiras por indivíduos equipados com armas de guerra, favorecidos por uma topografia e condições urbanísticas peculiares, o tráfico de drogas e de armas, roubo de cargas e milícias evidenciam que, de há muito, o Estado do Rio de Janeiro foi capturado parcialmente pelo crime organizado.

E embora a atuação do crime organizado seja mais visível naquela unidade federativa, dada sua notória incapacidade político-administrativa, trata-se já de um problema nacional que deriva, em última instância, de um modelo punitivo marcado pela separação e irracionalidade do Sistema Criminal Brasileiro.

O adequado enfrentamento da delinquência organizada exige planejamento estratégico com diretrizes e ações de curto, médio e longo prazo. Mas a lógica da intervenção do Estado Federal, marcada pelas notas da excepcionalidade, limitação e transitoriedade tende a dificultar o cumprimento do objetivo final, que não pode se limitar a devolução de espaço territorial conflagrado à população em condições um pouco mais suportável.

Ordem pública e segurança pública são temas transversais. Atacar a parte ostensiva da desordem pode ser bastante útil para governantes em tempos de crise moral e de eleições; blindados e soldados nas ruas produzem alto impacto psicológico e conquistam a adesão da maioria da população, mas, sem informações qualificadas, recursos materiais, pessoas, tecnologia, treinamento e capacitação permanentes, não se vai ao centro do problema.

Sob o ponto de vista institucional, nesse campo nada escapa à competência dos protagonistas do Sistema de Justiça; Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e Sistema Prisional são elementos de interação inevitável na função de prevenção e repressão ao crime, por meio das atividades de policiamento ostensivo, investigação, promoção da ação penal, julgamento de custódia de presos.

Nenhuma dessas instituições pode funcionar isoladamente no sistema; o aumento ou diminuição de atividade de uma produz sobrecarga ou deficit na capacidade de resposta dos demais; se soluções não são pensadas sistemicamente a tendência é mais ineficiência e certeza de impunidade.

A histórica negligência do Estado brasileiro para com o Sistema de Justiça Criminal levou a acumulação de problemas estruturais e funcionais que minam a sua eficiência. A polícia investiga apenas cerca de 11% (onze por cento) das ocorrências registradas pela Polícia Militar e algo próximo a 1% dos crimes patrimoniais; e o número de ações penais promovidas pelo Ministério Público e julgadas pelo Judiciário representam menos da metade dos inquéritos apurados pela polícia.

Ao contrário do que apregoam os governantes, no ranking mundial de número de presos por habitantes, o Brasil ocupa, na verdade, a 36a posição, com 289 presos por 100 mil habitantes, de acordo com o Centro Internacional de Estudos Prisionais (ICPS, na sigla em inglês.

Aplicamos ainda leis pensadas para sociedades distantes do nosso tempo, em que os crimes eram basicamente de um indivíduo contra outro, praticados quase de forma artesanal. O Código Penal é de 1940 e boa parte dos crimes e das penas que prevê não são efetivas porque, ao longo do tempo, foram sendo criados diversos institutos legais para evitar a prisão, como transação penal, suspensão do processo, substituição de penas privativas de liberdade por prestação de serviços à comunidade ou restrição de direitos.

A taxa de prescrição dos crimes, em razão da baixa quantidade da pena e de um modelo irracional, em que o Estado perde o poder de punir mesmo quando já instaurou o processo criminal, faz com que dois em cada cinco condenados fiquem impunes. No STF, 1/3 dos crimes de réus com foro especial prescreveram em dez anos (www.folha.uol, acesso em 26.02.2018).

No Rio de Janeiro a extinção da punibilidade em 2015 foi de 51,84% e apenas 15% dos processos foram julgados no mérito (Vasconcellos, Aylton Cardoso, Exame Analítico das Informações Estatísticas da Justiça Criminal de Primeiro Grau de Jurisdição do estado do Rio de Janeiro, www.editorajc.com.br, acesso em 27.02.2018). A reincidência é sensivelmente alta, em especial nos crimes patrimoniais, a reparação das vítimas é quase nula e a ideia de ressocialização do criminoso um insulto à inteligência. O sistema progressivo de pena é uma fraude, porque na prática temos apenas o regime fechado e a rua; condenados por crimes graves cumprem 1/6 ou 2/5 da pena e vão pra casa, porque na maioria das vezes não se distingue os perfis criminológicos, por falta de exames periciais, e por falta de estabelecimentos penais apropriados a regimes semiaberto e aberto.

Apenas em 11 estados existem colônias agrícolas, industriais ou similares (institutos penais ou albergues), o que faz com que a imensa maioria de condenados não trabalhem e cumpram suas penas em regime aberto, com ou sem uso de tornozeleira eletrônica.

O ex-presidiário volta às ruas e engrossa as fileiras do crime organizado como especialista em várias atividades, a serviço das facções que o comandam, inclusive de dentro dos presídios, onde o sinal do celular funciona muito bem, assegurando “o direito do preso à comunicação com o mundo exterior”.

Para que o condenado no Brasil seja mandado à cadeia é preciso ter sido condenado a pena igual ou superior a oito anos de reclusão, salvo se reincidente. A inadequação de penas mínimas cominadas e o receio dos juízes em aplicar penas médias levam ao paradoxo de manter-se alguém preso quando é só acusado, e soltá-lo quando considerado culpado, inclusive em crimes de tráfico de drogas, crimes contra a integridade física das pessoas e crimes contra a Administração Pública.

É esse deficit no sistema de penas que explica a taxa de cerca de 40% dos presos provisórios no Brasil e afasta a ideia de encarceramento excessivo de indivíduos primários e de bons antecedentes – praticamente inexistente no regime fechado-, como se fora fruto de voluntarismo judicial.

No caso do tráfico de drogas, a lei corretamente aumentou a pena mínima e criou mecanismo para distinguir pequenos traficantes de traficantes profissionais, estabelecendo para os primeiros (primários, de bons antecedentes e não dedicados a atividades criminosas ou pertencentes a organizações criminosas) uma diminuição de pena de até 2/3 (dois terços), mas, como promotores e juízes parecem não compreender a importância dessa individualização, muitos grandes traficantes acabam se beneficiando disso; pois como é frequente aplicar-se-lhes a pena mínima de cinco anos de reclusão, acabam obtendo, no Tribunal, a diminuição da pena para menos de três anos, o que tem permitido que indivíduos apanhados com dezenas de quilos de dogas sejam mandados, na prática, de volta à traficância.

Para que alguém seja processado por crime de sonegação fiscal no Brasil – que subtrai recursos da saúde, da educação e da segurança pública – é preciso que se instaure antes um processo administrativo que apure a existência do débito em caráter definitivo, o que permite ao sonegador percorrer várias instâncias recursais e um dia, querendo, livrar-se da acusação pagando a dívida antes do recebimento da denúncia. Um meio barato de capitalização financeira por parte de empresários criminosos.

No Brasil o juiz não pode considerar antecedentes criminais do acusado se ele não foi condenado naqueles processos; é o princípio da presunção de inocência elevado ao quadrado. Alguns entendem que não devem considerar a conduta social e personalidade do agente prevista na lei penal; negam-se a avaliar o que é mais relevante para individualizar a pena do condenado, o que implica o absurdo de se aplicar a mesma quantidade de pena a alguém que responda a vinte, trinta processos criminais e ao cidadão primário e sem antecedente criminal. Nivela-se os desiguais.

E os desafios agora são identificar, investigar, punir e prender os profissionais e especialistas da delinquência organizada, que cresceram à sombra da ineficiência do Sistema, se associaram a setores da classe política, das elites e das polícias e se estabeleceram contra o sistema.

Por isso o discurso agora não é mais o do controle do nível da criminalidade, mas o de combate ao “inimigo”; não se trata só de punir simplesmente aquele que viola o Direito Penal, mas de desarticular facções criminosas que desafiam a própria vigência da ordem jurídica e o
aparato de Segurança estatal. Se policiais são mortos quase diariamente no RJ, se até Juizes são assassinados, se

comunidades inteiras são reféns do crime organizado, as ameaças afetam liberdades coletivas e o aparato se segurança do Estado. Se os próprios agentes estatais são dizimados, a intranquilidade social dá lugar ao medo e o cidadão passa a ver um assassino em cada pessoa, desconfiando de tudo e de todos.

O que está em jogo agora, portanto, não é restabelecer equilíbrio entre demandas e processamento do crime; trata-se de decidir sobre as próprias bases – os programas – do Sistema de Justiça Criminal para a recuperação da confiança da população nas instituições encarregadas de assegurar vigência ao Estado de Direito.

O cidadão que já foi vítima sabe que as instituições não funcionam bem nem mesmo em relação a crimes de fácil comprovação. E agora sua angústia aumenta em saber que a delinquência organizada deverá ser enfrentada por esse mesmo sistema, com os mesmos instrumentos e procedimentos legais. Sabe que o número de soldados do tráfico e o seu poder de fogo são muito superiores ao dos policiais, que o número de investigadores é insuficiente e que os policiais ganham uma miséria, enquanto o garoto de dez anos de idade no tráfico experimenta o glamour de ter nas mãos um fuzil e ganha o dobro.

O cidadão informado sabe que o Judiciário não é capaz de solucionar litígios; a sentença quando muito põe limite a um conflito de raiz sociopolítico-econômico, devolvendo o problema à sociedade que o gerou; não restaura direitos lesados, especialmente quando se cuide dos
direitos da personalidade (honra, vida, intimidade, liberdade etc). E todos sabem que o crime compensa, especialmente para os criminosos do colarinho branco, que dificilmente devolvem todo o dinheiro público desviado quando apanhados.

Nesse modelo tanto se produz disfuncionalidades por omissões quanto por excessos; tanto há impunidades em níveis alarmantes quanto processos criminais que deveriam ser evitados, por falta de uma Política Criminal capaz de ver a criminalidade sob perspectiva científica e
desenhar programas de ação que articule os elementos do sistema.

Os legisladores parecem ignorar as transformações na ordem econômica e social e a explosão de litigiosidade verificada a partir da Constituição em 1988, que alteraram o padrão da criminalidade; preocupados apenas em minorar a superlotação dos presídios e em poupar os governantes da obrigação de construir presídios de segurança máxima, limitam-se a criar normas e instrumentos para a descompressão do regime fechado, como audiência de custódia, mutirões carcerários etc.

No ano de 2016 entraram no sistema três milhões de novos processos criminais no primeiro grau e apenas 443,9 mil (15%) foram julgados. Há seis milhões e meio de processos criminais em andamento no país. Os processos demoram, em media, 03 (três) anos e 01 (um) mês (www.cnj.jus.br). E temos 611 mil mandados de prisão a serem cumpridos (BNMP-CNJ).

O Brasil tem 18.011 Magistrados, o que representava, em 2016, 8.2 por cada 100 mil habitantes – cinco vezes menor que o necessário- cabendo-lhes em média 7.192 processos (fonte: Justiça em números, CNJ). Julga-se em média apenas 1/3 (um terço) dos processos criminais que entram no sistema ao ano, basicamente de réus presos. Processos de réus soltos em sua maioria caem na prescrição. Enquanto o Brasil gastou, em 2012, 1,3% do PIB com a manutenção do Poder Judiciário em todas as suas esferas, o estudo da OCDE mostra que, para um conjunto de 24 países, este gasto atinge em média 0,2% do PIB. Mesmo os países que gastaram mais em 2012, Polônia, Eslovênia e Israel – se situaram entre 0,4 e 0,8% do PIB. (Cerqueira, Daniel e Samy Alexandre, Em busca da Transparência dos Dados de Justiça no Brasil: O Projeto IpeaJUS, www.CNJ.jus.br, acesso em 27.02.208).

O combate ao crime organizado não é prioridade no Brasil. Apesar de o Conselho Nacional de Justiça ter recomendado há dez anos aos tribunais a criação de varas especializadas para julgamento de processos do crime organizado, até 2016 só havia 62, em seis Tribunais de
Justiça e três Regionais Federais (TRFs) (www.cnj.jus.br) Esses dados mostram que o Sistema de Justiça Criminal produz deficits em todas as suas partes e que suas instituições atuam de maneira estanque, sem uma política definida, planejamento estratégico consistente e coordenação nacional. Não só as polícias, mas Judiciário e Ministério Público também não se comunicam adequadamente.

Há um claro divórcio entre a Criminologia (o estudo científico do crime, do criminoso e do sistema punitivo), a Política Criminal (as opções para o enfrentamento da criminalidade) e o Direito Penal (a chamada dogmática penal – regras e princípios de aplicação, tipos e penas), fenômeno que ocorre em quase todo o mundo e é apontado como a causa fundamental da ineficiência no enfrentamento da criminalidade atual no mundo tecnológico e globalizado.

A desconsideração de estudos científicos sobre o perfil do criminoso, causas, motivações do crime, papel e direitos da vítima e o controle social, inviabiliza uma Política Criminal responsável por fórmulas e programas que devam ser plasmados depois no Direito Penal.

O legislador edita leis penais e processuais ad hoc reagindo sempre que algum grupo de pressão ganhe a simpatia da mídia em torno de algum problema grave. Mas apesar disso, não se pode atribuir às leis as mazelas do sistema, porque é com essas mesmas leis que os elementos do sistema atuam pontualmente com eficácia, como mostram os processos da operação Lava Jato.

É urgente pensarmos uma Política Criminal que leve em conta os três momentos incindíveis de resposta social ao problema do crime: momento explicativo empírico (criminologia), o político decisional (Política Criminal) e o instrumental (o Direito Penal), unindo saber empírico e saber normativo (Garcia Pablo de Molinas).

O crime organizado não nasce grande; é resultado de um processo que se instala por oportunidade e se consolida à sombra da ineficiência estatal. E, a despeito de suas raízes socioeconômicas, sua expansão e fortalecimento só se dão a partir do engajamento de agentes do Estado. Portanto, uma Política Criminal de combate ao crime organizado nunca poderá olvidar essa específica gênese criminógena.

As vertentes da criminalidade de massa e do crime organizado exigem estratégias distintas,porém complementares. E o Direito Penal e processual penal, como produtos dessa Política Criminal, devem oferecer, menos ideias abstratas, e mais soluções práticas, econômicas, céleres e justas no enfrentamento desse dramático problema. Nada justifica tratamento processual igual para crimes e criminosos de perfis tão distintos. É necessário um novo modelo de gestão de conflitos, com delegacias de polícia, promotorias e juízos especializados em crime organizado, de um lado, e a assunção, por lei, do mecanismo de solução consensual entre o Ministério Público e o investigado para crimes praticados sem violência à pessoa, puníveis com pena de até quatro anos de reclusão e multa.

A possibilidade de acordo imediato entre o Ministério Público e o investigado/acusado, em que o processo ficasse suspenso se o autor indenizasse a vítima, pagasse multa, prestasse serviços à comunidade e fosse monitorado eletronicamente pelo prazo estipulado, sob pena de revogação, ou que, com a aquiescência de seu advogado, aceitasse desde logo a pena e o regime oferecidos com homologação judicial, representaria diminuição de cerca de 50% das atividades processuais do Poder Judiciário, reduzindo consideravelmente a taxa de presos provisórios, o alto índice de prescrição e de impunidade, com a correspondente celeridade e economia de custos para todo o Sistema.

O Judiciário e o Ministério Público poderiam, em consequência, concentrar-se prioritariamente no combate aos crimes mais graves e os da delinquência organizada, enquanto o sistema prisional, poupado da frenética atividade diária de entradas e saídas de presos provisórios, poderia dedicar-se à melhor gestão dos presos condenados.

Mas não há soluções para esse estado de desinteligência sem uma firme decisão governamental, com aplicação de recursos e uma coordenação nacional para o acompanhamento dessa Política, que há de levar em conta as peculiaridades regionais e locais.

Sem Política Criminal, corre-se o risco de desperdiçar a rara oportunidade que se tem de implementar-se um modelo de enfrentamento multidisciplinar do crime organizado para o país, capaz de prevenir sucessivas intervenções federais que, sob o pálio da restauração da ordem pública, poderiam representar riscos ao próprio princípio federativo.

Mauro Viveiros é Procurador de Justiça Criminal do MP/MT, Mestre em Direito pela UNESP, Doutor em Direito Constitucional pela Universidad Complutense de Madrid-ES, Professor da ESMP/MT e Especialista em Estudos na Área do Crime Organizado pela Universidad de Salamanca-ES

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