Se um sujeito abrir as “páginas” de algum jornal ou portal de notícias, além de todos os assassinatos de reputações e “cancelamentos” – justificados por alguma causa supostamente nobre – deparará, também, com inúmeros usos mal feitos de palavras há muito estabelecidas no léxico brasileiro.
Uma delas, certamente, é “igualdade”. Outra, não menos na moda: “liberdade”.
Tudo bem que, pelas próprias definições, essas são palavras que significam conceitos de alto grau de equivocidade. Porém, o perigo que anda espreitando o leitor inexperiente – não só em interpretação de textos, como na vida – é que elas têm sido apresentadas como consensuais, absolutas, pacíficas; na verdade, podem até levar a conclusões absolutamente distintas daquelas que se apresentam, e certamente indesejadas pelo autor.
Virtude maltratada
Como se não bastassem as névoas lançadas sobre conceitos usuais em discussões políticas, também as encontramos em outra seara: a das virtudes. A mais maltratada, sem sombra de dúvidas, tem sido a prudência: de capacidade de agir segundo a reta razão (para chegar a um fim transcendental), tornou-se quase sinônimo de uma triste mistura de preguiça com medo, que impede o sujeito de lançar-se a qualquer empreendimento que vá custar-lhe algo precioso sem que gere ganhos próprios – materiais (como dinheiro) ou imateriais (como estima ou admiração).
A humildade, esta outra vítima dos nossos tempos, tem sido associada por alguns a um estado de espírito tacanho, pequeno, sem qualquer ambição de crescimento; seja no campo profissional, social, ou até espiritual, o que se tem esperado de uma pessoa supostamente humilde é que ela não aspire a grandes conquistas. Existe ainda a sua agravante: a suposta humildade que só se alcança mediante a pobreza financeira absoluta.
Nada disso é coerente com o que sempre se ensinou a respeito dessa tão necessária virtude. É interessante que a raiz da sua morfologia resida no latim “humus”, que significa “terra”: o sujeito humilde é aquele que tem os pés no chão, e não se deixa transportar pelos delírios de uma estima exagerada por si mesmo. Não por acaso, ela é considerada uma virtude derivada da modéstia, no sentido de moderar-se a estima que alguém atribua a si mesmo.
Não é só quanto à definição que a humildade sofre com desvios; também nas formas de sua aquisição – e aqui, talvez, com muito maior perigo – existem algumas ideias que não correspondem exatamente àquilo que se deseja obter. Uma delas é pensar que as ações que nos levam a crescer em humildade sejam a virtude em si mesma.
Retidão
Agir com retidão de intenção, por exemplo, desejando que o resultado de um ato moralmente bom seja alcançado pelo próprio bem que significa, e não por promoção pessoal, é uma conduta meritória e ordenada à humildade; porém, não é isto, em si, a elevação do grau desta virtude no sujeito que praticou tal ato.
Servir ao próximo desinteressadamente é outra conduta que ordena a consciência humana à vivência da humildade; porém, também não é ela, por si só, que denota ter se tornado o sujeito mais virtuoso. O mesmo acontece com o reconhecimento de seus erros – principalmente perante outras pessoas – e o controle dos pensamentos fantasiosos sobre si próprio (que frequentemente levam o sujeito a estimar-se além da realidade).
Apesar de tudo isso conduzir-nos numa rota tendente ao crescimento em humildade, ela só brota de fato no coração humano quando temos a singular oportunidade de enxergar umas das coisas mais difíceis da vida: nossas misérias mais profundas.
Não se trata somente de enxergá-las como quem lê um livro ou vê um filme; trata-se de tomar uma profunda consciência dos defeitos que possuímos, e notar que, por mais que não os estejamos colocando em prática todos os dias, sempre sentimos suas picadas e mordidas. Não raro, infelizmente, os concretizamos, tornando um pouco pior a vida de alguém no mundo (além das nossas, é claro).
Reconhecer profunda e intimamente nossas misérias (durante um momento de recolhida meditação) é uma vitória que não nos bate à porta todos os dias. Aliás, o sujeito que anda à procura do crescimento em virtude considera esse achado um tremendo presente, e não se incomoda em perceber que seu autorretrato não tem linhas tão elegantes e atraentes como sempre houvera imaginado.
Antes, fica alegre como quem ganhou um prêmio que não merecia, e faz planos eufóricos sobre como lutar para corrigir os defeitos recém descobertos e transformá-los em acertos.
No fim da linha, quando já não houver mais tempo para refletir sobre defeitos e qualidades, feliz será aquele que tiver se exercitado na humildade e se enxergado com clareza: com muita naturalidade e serenidade, não levará nenhum susto ao se ver retornando à terra, àquela mesma velha terra de onde viemos e para onde todos haveremos de voltar.