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Gosta de ver TV? Agradeça a este pioneiro que instalou a primeira em Cuiabá

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Gosta de ver TV? Agradeça a este pioneiro que instalou a primeira em Cuiabá
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

O ano é 1967. Vendedores batem às portas dos cuiabanos oferecendo um contrato para aquisição de um aparelho que além de reproduzir som – tal qual o rádio – exibe imagens. Até então muitos nem haviam ouvido falar sobre a TV em Cuiabá. A cidade sequer possuía uma torre de transmissão.

A rotina da cidade era pacata. À época o cuiabano estava acostumado com os passeios nas praças da República e Alencastro, a observar o movimento da cidade de suas janelas e a socializar nas calçadas. Ir ao cinema também fazia parte do cotidiano dos moradores da cidade.

Mas mesmo os que frequentavam estas sessões que por vezes começavam com imagens de telejornais, mal podiam imaginar que o aparelho eletrônico que era apresentado como a evolução do rádio e que de certo modo, faria de seus lares um cinema particular, poderia de fato chegar às casas da cuiabania. Era difícil conceber a novidade que se descortinava. Ou seja, uma árdua tarefa para quem tentava convencer os clientes.

Ele vendia TV, a caixa mágica

Entre os vendedores que ofereciam a tal caixa mágica estava o aposentado Benedito Costa Marques Neto. Aos 77 anos, ele relembra com saudosismo daquele momento singular da sua trajetória e que marcou também, a história da cidade.

Afinal, hoje, a televisão, rumo ao futuro, é acessível em diferentes plataformas, conectada à internet e totalmente incorporada ao dia a dia, mas houve um passado em que ela era pura magia. Benedito guarda boas lembranças desse tempo em que televisão era coisa de ficção científica.

Ele foi personagem importante da implantação da TV em Cuiabá, cooptado pela jornalista Antonieta Ries Coelho. A pedido de Eduardo Zahran, Antonieta foi responsável por dar andamento à papelada do pedido de concessão de um canal de TV para Campo Grande, junto ao Contel (Conselho Nacional de Telecomunicações). De pronto, ela percebeu o potencial de Cuiabá para acolher o mesmo empreendimento. Seria a venda de receptores que viabilizaria a empreitada. Em 1965, a TV Morena, de Campo Grande, já funcionava e o exemplo bem-sucedido poderia inspirar credibilidade ao investimento.

“E foi então que começamos a tentar convencer as pessoas a antecipar a compra dos aparelhos de TV. A meta era vender 1500, mas em pouco mais de um ano conseguimos vender 1280. Logo que atingimos essa cota já foi possível iniciar a construção do prédio da TV, no mesmo lugar onde a Centro América funciona hoje e também, a antena da TV”, conta. Para tanto, foi criada a Sociedade Mercantil Zahran, que operou entre os anos de 1966 e 1967.

“Muitos pagavam em prestações, na confiança mesmo. A gente ia fazendo acordos conforme as pessoas podiam pagar. Fui maltratado várias vezes. Haviam os que achavam que aquilo era inconcebível demais e me acusavam de golpe e de ser cúmplice da Antonieta”, se diverte.

Comprometido com a causa, Benedito, vendia, revisava, instalava aparelhos, ligava e desligava os aparelhos distribuídos na cidade quando a TV operava em caráter experimental e mais tarde, atuou também como operador de câmera que ensinou muitos dos profissionais que o sucederam.

Primeira transmissão de TV

Em 18 de setembro de 1950 era fundada a primeira emissora de TV no Brasil e a quarta no mundo, a TV Tupi de São Paulo. Em Cuiabá, a primeira transmissão se deu em caráter experimental, em 6 de novembro de 1967, com a presença de autoridades políticas e líderes religiosos que endossariam o projeto.

“Como o prédio só ficaria pronto em meados de 1968, a transmissão foi feita de uma sala emprestada do Hospital Santa Helena”, relembra. A experiência, somada a anúncios nos jornais da capital reforçando que a TV só seria uma realidade se a população se engajasse com a compra dos televisores, impulsionou as vendas. “Quando o prédio ficou pronto começamos a operar em caráter experimental”.

Sede da TVCA ainda em construção (Reprodução G1)

No artigo “A implantação da televisão em Cuiabá: O impacto real e virtual”, a pesquisadora Adriana Azevedo Paes de Barros, relata que as reações do povo cuiabano eram as mais diversas.

“Conta-se que algumas pessoas que receberam seus aparelhos antes da emissora entrar em fase experimental, acabaram estragando o aparelho de tanto tentarem sintonizar algo. Com a associação do Brasil ao sistema internacional de satélites (INTELSAT), em 1967, em alguns momentos era possível captar algumas imagens na maioria das vezes de péssima qualidade, e esse era o motivo pelo qual alguns aparelhos foram danificados antes mesmo da inauguração da TV”.

“Foi a partir dessa primeira experiência que o comércio local começou a vender também. A loja Rainha do Lar foi a primeira. Ela ficava na rua 13 de junho, quase em frente à Praça Ipiranga”.

Para viabilizar essa primeira transmissão, Benedito conta que foi realizada uma grande força-tarefa. “Instalei televisores em principais pontos da cidade. Na exibição na frente da casa do Bolinha, que morava bem pertinho da Santa Casa [na área onde hoje é a Praça Maria Taquara] tinham 400 pessoas assistindo. Essa iniciativa era para deixar a população com vontade de ter uma também”.

TV em caráter experimental

Quando ela passou a operar em caráter experimental, ele relembra que todo dia saía ligando e desligando as 12 TVs que foram distribuídas em locais públicos de Cuiabá e Várzea Grande “Entrava na Kombi e rodava por Cuiabá e Várzea Grande”.  Segundo ele, como não possuíam tecnologia para reproduzir em tempo real o que era exibido por uma grande emissora, eles apostavam em programação ao vivo e desenhos animados.

“Padres de diferentes paróquias faziam orações no programa Momentos de Paz e logo tinha desenho animado para crianças e adolescentes e um filme para adultos. Tinha Flintstones, Pepe Legal, Scooby Doo, episódios do seriado Papai Sabe Tudo e Rin Tin Tin”.

A equipe pioneira coleciona muitos relatos sobre esse período que marcou o advento da TV em Cuiabá. Em entrevista à pesquisadora Adriana Paes de Barros, Antonieta relatou episódios pitorescos que aconteceram porque as pessoas desconheciam os princípios da eletrônica que geravam transmissão de imagem e som televisiva, a exemplo.

Cuiabanos ficavam intrigados com a TV

“Para estes cidadãos era quase uma ficção científica que se tornava realidade. Um desses fatos, ocorreu em frente ao Banco do Brasil, na área central da cidade, onde a equipe técnica instalou um  aparelho de TV. Segundo reporta Antonieta Coelho, o Sr. Leôncio, um vendedor de bilhetes de loteria, ao ver as primeiras imagens, reconheceu a pessoa de Antonieta na tela, levando um enorme susto e aproximando-se do aparelho, retrucou inconformado: ‘Êah! Que que esse Niêta! Como que ocê entrou nessa caixinha!  Você  é tão grande, como que entrou nessa caixinha?” e foi olhar por trás para ver, e ele não acreditava como que eu estava dentro da caixinha”, disse ela à pesquisadora’.

Benedito também lembra uma dentre várias situações divertidas que vivenciou. “Eu saía com dez televisores em média para distribuir, trabalhava até aos domingos. Em um destes, peguei uma rota para entregar alguns e sempre levava um sobressalente para o caso de algum precisar ser reposto. Pois bem, eu estava em Várzea Grande, em frente ao Clube Operário quando um senhor me perguntou: ‘É você que vende esse rádio que vê gente?”, sorri.

“Daí eu disse que sim, fechamos negócio e instalei na mesma hora o televisor dele. No outro dia, de manhã, ele estava no escritório e me disse assim: ‘vim devolver esse aparelho porque eu não gostei, não. Levantei de madrugada, tomei banho, bebi meu guaraná ralado e quando fui ligar a TV para assistir Tonico e Tinoco só tinha shhhhh [referindo-se ao barulho da TV fora do ar]”.

Benedito logo esclareceu ao cliente que como as transmissões estavam ocorrendo em caráter experimental, elas começavam às 17 horas e finalizavam às 19h, só mais para frente, foram feitas das 17 à meia-noite.

Depois da primeira transmissão em 1967, da conclusão do prédio e do período em que a emissora atuou em caráter experimental, enfim, em 13 de fevereiro de 1969, começou a operar oficialmente. “Começou com imagem em preto e branco. A primeira exibição em cores foi só na Copa do Mundo de 1970”, relembra.

Benedito segura memórias de Antonieta registrados em uma publicação encadernada que entregou ao amigo (Foto: Ednilson Aguiar)

Ditadura Militar

A cidade mudava, o Brasil mudava. Especialmente, por conta do contexto político da época. A TV cuiabana também sentiu os impactos da Ditadura Militar. Em compilado de memórias de Antonieta, que ela encadernou e entregou a Benedito – e que ele guarda como um tesouro – ela relata sobre a influência do regime nesse processo de consolidação da TV em Cuiabá.

“Tínhamos duas câmeras muito grandes ajustadas sobre tripé e tínhamos que preparar cenários para os programas ao vivo e assim, tínhamos poucos meios de ajudar o apresentador. Por imposição da censura que vigorava na época, tinha que manter o texto na mão e não podia alterá-lo, pois este era submetido antecipadamente à aprovação da Polícia Federal”.

Benedito lembra inclusive, de ter surpreendido um agente da polícia dentro do escritório de Antonieta. “Quando eu cheguei, perguntei o que ele estava fazendo ali. Ele estava vasculhando a gaveta dela, mas ele disse que era policial e então, mas mesmo assim eu pedi que ele saísse. Era como se ele estivesse procurando algo”.

Desafios à parte, Benedito considera que viveu uns dos melhores anos de sua vida e tem consciência da importância de sua colaboração. “Amigos e familiares também se orgulhavam. Teve uma tia minha que até chorou”, sorri.

Um amigo que reencontrou naquele tempo, relembrou que certa vez estavam brincando em Poconé, jogando bolita, o pioneiro da TV em Cuiabá havia pego uma revista Cruzeiro e afirmado que um dia trabalharia na televisão, sem ter consciência alguma que essa profecia se concretizaria.

“Depois que a TV já estava funcionando em Cuiabá, começou o processo de estender a transmissão até outros municípios. No dia que coloquei a repetidora de Poconé, minha tia começou a assistir o Momento de Paz e quando olhei para ela, estava chorando. ‘Estou vendo televisão, na minha casa e ainda por cima, instalada pelo meu sobrinho’, foi emocionante tê-la visto tão contente. Foi emocionante ter visto a TV mudar a vida de tanta gente”.

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