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Eu vou tirar você deste lugar

Não gostamos do “self-made-man”, motivo de admiração dos americanos. Preferimos a “boa estirpe”, que na verdade nunca tivemos.

7 minutos de leitura
Eu vou tirar você deste lugar
(Foto: RAMA DE OLIVEIRA/DIVULGAÇÃO)

Existe uma guerra no Brasil atual entre os conservadores (muitos deles evangélicos) e os “liberais” – e ela não tem nada de guerra “santa”.

É uma releitura atual da nossa boa e velha guerra entre classes. E permita-me diferenciar aqui a expressão “luta de classes”, como é usada no discurso marxista, e a velha competição entre letrados e “analfabetos”, uma oposição entre os que incorporam uma cultura supostamente alta e os “pobre ignorantes” da cultura baixa.

Entre quem é legal ou “cool” e quem é brega e vil, que é um fenômeno social que mancha nossa identidade brasileira.

Apesar de não termos uma cultura de castas como a Índia, nossa tradição social é marcada pela exclusão de grupos sociais, baseadas numa noção empolada de aristocracia.

Primórdios conturbados

Desde os tempos coloniais, a família a qual a pessoa pertencia, o grau de proximidade com a nobreza portuguesa, o tom da pele, faziam diferença no estilo de vida e acesso a privilégios.

Nossos primórdios conturbados não conferiam a todos os habitantes um status igualitário, mas nos dividiu em classes que nos conferem uma noção artificial de valor.

A colonização americana criou uma noção de cidadania vinculada ao estar no país, no arar a terra, no construir com as próprias mãos e no valor intrínseco da condição humana.

Como reza a Declaração da Independência: “Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade”.

Nossos mazombos, ao contrário, ficaram sonhando com Portugal, e encontravam senso de valor próprio e propósito não no que estavam construindo no Novo Mundo, mas pelo que eram ou deixavam de ser nas terras do além-mar.

Figos e mangas

O que era “chique” vinha de longe, carregado de uma sofisticação nada prática, mas que simbolizava a rejeição daquilo que era da terra. As sedas eram mais chiques que o algodão, os figos melhores do que as mangas, o falar afrancesado melhor do que aprender o Tupi.

Ainda hoje no Brasil essa arrogância subsiste como uma subcultura da classe que se considera “alta”, afetada e chique – e que se diferencia da outra por não ser “povão”.

Até um tempo atrás o acesso a esta mentalidade aristocrata era revelada na linguagem que se falava, no colégio em que se estudava, na música que se ouvia e na roupa que se vestia.

Esses sinais culturais demarcavam o poder socioeconômico da pessoa. Enquanto na América a origem humilde é um motivo de orgulho para as pessoas que fazem sucesso, no Brasil a origem social demarcava, ou demarca ainda, até onde a pessoa podia chegar. Não gostamos do “self-made-man”, motivo de admiração dos americanos. Preferimos a “boa estirpe”, que na verdade nunca tivemos.

Nos anos da ditadura militar, esta voz da elite letrada e europeizada se tornou dona da cultura brasileira, da música, do teatro e da literatura, e até, numa contorção perversa da realidade, também se tornou a dona da narrativa sobre a pobreza e o sofrimento.

Eles representavam o Brasil inteligente. Cantavam lindamente as tristezas da vida na favela, o sofrimento da mãe perdendo um filho para a polícia, a seca do sertão nordestino. Ninguém pode contestar a beleza lírica de suas letras, nem a força de sua música, mas de maneira nenhuma eles eram representantes do povo.

Glamourização da pobreza

O povo mesmo ouvia outra coisa. As músicas que mais pareciam hinos soviéticos, pregando justiça social e glamourizando a pobreza não eram realmente populares, a não ser entre a classe média letrada.

Quando criança eu morava numa favela belorizontina e me lembro que, ao subir para a Igreja Católica no alto do morro, eu podia acompanhar a mesma música desde o sopé da favela ao alto, porque todos os rádios eram ligados num canal só. Era a rádio Atalaia a favorita, que só tocava Odair José, Roberto Carlos, Fernando Mendes, Perla, Wando.

Um episódio interessante da MPB que ilustra bem demais esta brecha entre as classes se deu em 1973, quando Caetano se encheu de amores e curiosidade pelo artista que mais vendia, da gravadora Polygram, Odair José.

Odair, apesar de ser considerado músico “de outro nível”, foi incluído na festa de celebração da gravadora, Phono 73, que contava com Gil, Betânia, Nara, Gal, enfim, a turma da elite da MPB. Caetano insistiu em se apresentar com Odair, para surpresa de todos.

A apresentação foi intensamente vaiada e Caetano sai do palco furioso, enquanto o “bom moço” Odair José continuou cantando seus números, aparentemente indiferente à reação da platéia.

Odair disse mais tarde, numa entrevista: “Eu era o maior vendedor da Polygram, mas não estava ali entre a elite. Naquele momento foi um prazer estar com ele, um cara inteligente, à frente de seu tempo. Mas foi evidentemente uma confusão com vaias, porque eu era um objeto estranho naquele ambiente… Nunca tive como meta atravessar o ”outro lado” da MPB, eu só sei fazer o que faço e pronto. Se é brega, popular, ou outra coisa, não me importo. Eu me lembro que, diante das vaias, Caetano jogou o microfone no chão, falou alguma coisa sobre classe A e Z e saiu do palco. Eu permaneci no palco, não tinha porque sair de lá e cantei outras duas músicas”. [1]

Caetano realmente tem uma percepção acima da media da plebe ignara e tentou cruzar a fronteira entre o culto e o brega. Cedo demais. Mais tarde ele repetiu o feito com Fernando Mendes e Peninha, com mais sucesso.

Mas é importante notar aqui que, enquanto Caetano e Chico narravam as glórias da prostituição, em “Tigresa” e “Folhetim”, o povo se deleitava ouvindo o romantismo do bom rapaz que tirava a moça da zona para se casar com ela, em “Eu vou tirar você deste lugar”, de Odair, ou “Moça”, do Wando. Parece que sempre houve uma contradição moral entre essas duas classes.

Para o pobre de verdade existe o certo e o errado, o bem e o mal, o comportamento inaceitável e doloroso da criminalidade, e a vida do pobre limpinho em busca de dignidade. As duas escolhas são diferentes na favela, mas para o riquinho do Rio Zona Sul elas se juntam numa coisa só. É tudo “pobreza”.

O moral e o “brega” na direita

Se ser moral é ser brega, o pobre brasileiro sempre foi “brega”. E aí chegamos na aborrecida guerra cultural que assistimos hoje entre os liberais “cultos” e os conservadores “bregas”.

Constantino, Felipe Moura, Mainardi, Sabino e seus colegas defendem ainda as virtudes do liberalismo dentro dos moldes dessa cultura limpa, correta, técnica. São da elite direitista que com dificuldade engoliu o presidente povão, mas que agora não esconde mais o seu desprezo.

Religião é coisa “brega”, princípios morais são bregas, bom é o liberalismo filosófico de Mills e os princípios econômicos de Hayek.

Para esta elitizinha liberal, mais interessada em preservar seu lugar ao sol – e neste grupo incluo certos protestantes protagonistas também deste neodireitismo que tomou conta dos bares no Brasil –, a religião do povão é desprezível.

O neopentecostalíssimo, os carismáticos, o catolicismo das massas, tudo isso não passa de reles misticismo que engana os trouxas. Os ministros e secretários representantes da moral que emana dessas expressões religiosas também são igualmente bregas e “povão”.

É uma pena que o preconceito de classe não os permite perceber que sem uma espinha dorsal religiosa e moral forte, o liberalismo econômico não consegue ficar em pé.

O próprio Adam Smith sabia disso, tanto que dedicou um livro inteiro a esse assunto: “A Teoria dos Sentimentos Morais”.  Só nossos intelectuaizinhos se dão ao luxo de ignorar.

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[1] Fala extraída do JC UOL

https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/noticia/2016/10/23/odair-jose-lanca-gatos-e-ratos-e-recusa-rotulo-de-brega-257802.php

E do post do blog Música em Prosa: https://musicaemprosa.wordpress.com/2018/03/12/o-dueto-de-caetano-velos-e-odair-jose-em-1973/comment-page-1/

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