Como todas as manhãs, a alvorada de dezenas de espécie de pássaros na “matinha” vizinha à casa onde moro me acordou para o amanhecer do dia 28 de outubro. Porém, um barulho destoante do canto das maritacas, periquitos, papagaios, pássaros pretos, entre outros, me chamou a atenção. Mas, como domingo é dia de dormir um pouco mais, não quis aguçar minha curiosidade a ponto de me levantar para descobrir o que eram aquelas “batidas” na parede.

Em vão. Minha intenção de permanecer mais tempo na cama, com dois idosos em casa, não vingou. O domingo começou cedinho aqui, ainda mais quando os velhos pais aguardaram ansiosamente o dia do segundo turno para eleger o novo presidente do Brasil.

Ao sair na varanda e respirar o ar fresco típico das manhãs de Chapada dos Guimarães, estava cheia de preguiça e tentando “acordar o raciocínio” para o domingo de eleição. Daí a cena inusitada e perigosa me revela aquele barulho destoante do canto das aves chapadenses. Meu pai, “Seo” Dirceu, 75 anos, homem de muita coragem e teimosia – e quase nenhuma destreza nos dois joelhos sem equilíbrio e sem os meniscos (perdidos ao longo de muitos anos de esforço no trabalho pesado) e que, junto com a labirintite, são responsáveis por frequentes quedas em casa e fora de casa.

Lá estava ele em cima de uma antiga escada de madeira, um martelo barulhento em mãos, pregando uma bandeira do Brasil na frente da casa. Certamente era a bandeira que guardou quando a seleção brasileira foi só decepção, na última Copa do Mundo. Nesse momento freei a vontade repentina de chamá-lo à atenção e me permiti “curtir” a cena.

Aquelas marteladas aos poucos me trouxeram lembranças de diversos momentos da minha infância e adolescência, em que aqueles braços e mãos, agora tão frágeis, doloridos e cansados, levantaram pequenas e grandes obras em nossa casa ou em prédios, igrejas, escolas…Lembrei-me, por exemplo, que ele era um dos mestres de obras que trabalharam muito para construir o canal do córrego da Prainha, em Cuiabá. Eram dias e noites, serões intermináveis para construir uma das mais importantes vias da Capital Mato-grossense.

Os primeiros prédios da não menos importante Avenida do CPA, também tem em suas estruturas as marteladas de meu pai. Ele é um construtor. Nunca vai deixar de sê-lo. Criou tetos e paredes para nos abrigar (foram cerca de uma dúzia de casas que ele construiu para nossa família, também para tios e avós), com aqueles braços fortes de outrora, hoje tão fracos na minha frente, tentando firmar aquela bandeira verde e amarela na fachada de casa. Lembrei-me de que ele também construiu muitos de meus sonhos e de meus irmãos. Durante essas “obras” houveram renúncias de si mesmo por várias ocasiões, e muitos calos nas mãos e na alma.

Pois nessa obra que estruturou nossas vidas, os passos dele não foram todos “politicamente” corretos. Meu velho pai, quando homem novo e até agora, erra. E quem não? Sempre teve suas limitações. Minha mãe que o diga. Um homem com inúmeras atitudes machistas, às vezes autoritário e injusto. Lembrei-me que de sua boca quase sempre saía exatamente aquilo que abominava, coisas que não desejava, não acreditava. Não sabia pedir desculpas, mas depois dos erros, suas atitudes sempre era um pedido de perdão.

É evidente que minha mãe eu e meus irmãos sofremos com suas limitações. Entretanto, existem benefícios de um pai na vida de uma família capazes de suplantar até aqueles traumas de infância mais cabeludos… Em certa ocasião, ele se opôs aos meus estudos por causa da minha escolha profissional. Foi duro, machucou. Mas nos próximos quatro anos de faculdade, mesmo quando esteve desempregado, fez bicos para eu chegar ao diploma.

Era muito ríspido com meu irmão caçula, não aceitava seus vícios, quis mandá-lo embora de casa, mas no fim foi o maior responsável por ele não se meter na maior “roubada” que poderia ter custado sua vida. Na hora certa ele estava lá, com pulso firme de pai, homem forte, para protegê-lo e mostrar o caminho certo. A martelada foi certeira. Hoje eu e meus irmãos não somos perfeitos, mas, assim como ele, apesar de nossos erros, acreditamos em Deus, na família, no trabalho honesto e nos amamos.

Lembro-me de seu “olhar torto” para as mulheres amigas da família que, na visão “torta” dele, não estavam dentro do seu padrão machista de mulher ideal. Mas não me esqueço do auxílio dele, através de minha mãe, ajudando essas mesmas mulheres quando tiveram dificuldades de criar seus filhos. Recordei-me da “cisma” com o primeiro amigo adolescente gay que entrou na nossa casa. Meses depois ele já o tratava como um filho.

E então o suor derramado garantindo o sustento de provavelmente um terço de sua vida, a defesa diante de inúmeros perigos pequenos ou grandes, a fé plantada no coração de criança, o amor pelos filhos e pela esposa, mesmo que não dito em palavras, mas estampado nos calos das mãos, no choro engolido (porque “homem não chora”) diante de uma doença dos pequenos, a construção do caminho para a escola, para a faculdade, para a vida… O exemplo. Isso é infinitamente maior que as marteladas fora do rumo que “machucavam os dedos” e “deixavam as unhas roxas”.

Nesse domingo de eleição, suas mãos trêmulas, seus olhos embaralhados e seus joelhos desiquilibrados não o impediram de acertar o rumo do martelo. Ele abriu o caminho e, felizmente, não se machucou. Foi certeiro!

Aquelas marteladas para erguer a bandeira verde e amarela na parede da frente de minha casa hoje, é o alicerce que meu pai está construindo, é a chance para o novo presidente e para aquela boa parte renovada do Congresso Nacional.

E mesmo quase octogenário, aquela bandeira verde e amarela colocada em silêncio, antes do do seu voto, é o grito de um velho homem sofrido pelas injustiças, pela insegurança, pelo medo do futuro causado por crápulas corruptos que tomaram de assalto o país. É o caminho que meu pai abre com sua fé em Deus, com a honestidade de um homem que sempre foi trabalhador e cumpridor de seus deveres e, mesmo assaltado continuamente pela classe política, nunca deixou de acreditar que o Brasil tem jeito…

Aquela bandeira do Brasil “martelada” na fachada de casa é a esperança de um pai e um avô que ainda se sente responsável pelos seus, porque os ama profundamente e sonha com a prosperidade de sua Pátria, para que seus filhos e netos tenham liberdade e vida digna, sem precisar mudar de país. Nesse 28 de outubro de 2018, eu votei no meu Pai.

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* Sanny Lisboa Ribeiro é filha do Seo Dirceu Ribeiro

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