Uma selfie para registrar o primeiro dia de aula, realizada na semana passada
Por vários anos, a comunidade de africanos e haitianos de Cuiabá tem contado com a ajuda de um amigo, que é um verdadeiro anjo da guarda. Especialmente no caso dos haitianos, em que muitos não sabiam falar uma palavra sequer em português, sempre mandavam chamar o tal “brasileiro que fala crioulo”. E assim, quando era para levar para o médico, ajudar com as compras do supermercado, receber um que chegava ou levar outro que ia embora, lá estava ele.
O estudante de sociologia e técnico da Secretaria de Educação de Cuiabá, Rafael Lira, 28 anos, não só foi só um amigo parceiro, como também, até os dias de hoje, dedica-se a ajudá-los a transpor uma das grandes barreiras: o idioma, tal qual um professor.
Recentemente, deu início a duas novas turmas de português. Uma na segunda-feira, para um grupo de haitianos e outra, de senegaleses, às terças-feiras. Em ambientes improvisados, mas com alunos ávidos pelo conteúdo, ele dá aulas gratuitas com ênfase em situações do cotidiano.
A convite do pastor, Rafael ensina haitianos na Assembleia de Deus do bairro Areão
Os haitianos assistem às aulas em uma das dependências da Assembleia de Deus do Areão, a convite do pastor. Quanto aos senegaleses – que em grande parte trabalham como ambulantes nas ruas do centro da cidade – as aulas ocorrem em uma sala de uma casa no entorno da Praça da Mandioca, onde chegam depois do trabalho. A lousa improvisada é uma folha de papel fixada na tela de uma TV de tubo.
Os senegaleses assistem às aulas em uma casa. A lousa improvisada de nada desmotiva os aprendizes. Chegando do trabalho, trocam os produtos pelos cadernos
“Tanto para os haitianos quanto para os africanos, eles buscam entender e se fazerem entendidos”. Segundo ele, o que os imigrantes têm em comum é que tanto em Senegal quanto no Haiti, o idioma oficial é o francês, mas no caso do primeiro, o idioma nativo é o wolóf e no segundo, o crioulo.
“Os haitianos, por estarem na América acabam tendo mais contato com a língua que mais se aproxima da nossa, o espanhol. O país vizinho, República Dominicana, fala espanhol. Então, de certa forma, o aprendizado acaba sendo mais fácil. Já para os senegaleses, o desafio talvez seja maior por falarem uma língua totalmente diferente”.
Rafael explica que a fonética brasileira se distingue do wolóf. “Pelo contato que já tive percebo a dificuldade que há em se pronunciar os sons da língua portuguesa”.
Todos atentos à aula de Rafael Lira
Cada turma tem atualmente, entre 15 a 20 alunos, mas ele estima que em vários anos de atuação nestes 20 e poucos anos, mais de 100 haitianos aprenderam português com ele. As ações de voluntariado começam em 2010, quando foi em missão para a África com um grupo de jovens ligados a uma ONG interdenominacional, a Jovens Com Uma Missão (Jocum).
Quando voltou, vivenciou dois anos de estágio em um curso voltado ao ensino de música e teologia em um seminário de missões da Igreja Batista, em Belo Horizonte (MG). Ao final, ele iria a campo para um lugar dentre três opções que havia feito: colaborar com ribeirinhos na Amazônia, Guiné Bissau – por conta da viagem anterior à África – e por último, o Haiti. “Confesso que era o terceiro na minha preferência. Nesta mesma ordem. Mas vivenciei a cultura haitiana a tal ponto, que me vi totalmente envolvido”.
Dentre os 9 meses que ficou por lá, mantinha contato constante com a família. “Eu já estava até deprimido de ter que voltar para casa, quando meu pai disse que haviam chegado muitos imigrantes à cidade. Era 2013. Pensei que esta era a oportunidade de retribuir a hospitalidade do povo haitiano”.
Constantemente circulando por orfanatos e hospitais, Rafael se encantava com a alegria espontânea deste povo, que mesmo em meio às adversidades, mantinha-se muito feliz. Quando chegou a Cuiabá, rapidamente se aproximou da Pastoral do Imigrante. Foi lá que começou a ficar conhecido como o “brasileiro que falava crioulo” e claro, era muito solícito. Era alguém com quem podiam contar.
De voluntário, passou a ter carteira assinada e rapidamente, chamou a atenção da coordenação da Educação de Jovens e Adultos, projeto da Seduc-MT. Virou intérprete do curso. O crioulo aprendeu no Haiti, em três meses.
Logo, foi convidado a participar também, do projeto de extensão do Instituto de Saúde Coletiva, Saúde do Imigrante. E a partir daí, surgiram outras grandes oportunidades de dedicação aos povos estrangeiros.
Integrou o projeto idealizado pela cineasta Glória Albues, O Haiti é Aqui – que visava diminuir as distâncias e promover a integração entre os cuiabanos e os haitianos -, e em parceria com o presidente da Associação dos Haitianos, Clercius Monestine, o “Cultura, História e Língua Haitiana, que ensina a outros entusiastas, um pouco da cultura haitiana, sua história e idioma.
“Ano passado formamos duas turmas de aprendizes e realizamos ainda, um curso básico na UFMT em parceria com o coletivo negro universitário”. Recentemente tornou-se membro também, da Associação de Defesa dos Haitianos Migrantes em Mato Grosso (ADHM-MT).
“Vou fazer sempre o que puder para ajuda-los. Muitos estão aqui trabalhando e mandando dinheiro para suas famílias. Outros, sonhando em trazê-las. Não é fácil, mas a resiliência deste povo é que me encanta. Se eles têm, sorriem, se não tem, sorriem também. Essa força de viver me motiva muito. Na verdade, quem está aprendendo sou eu”.
Interessados em colaborar com o projeto, podem contatar Rafael Lira pelo telefone (65) 98128-7126. Como se vê nas fotos, precisam de quadros brancos e pinceis, cadernos, canetas ou quaisquer outros materiais de papelaria.