Um acidente no trabalho fez um rapaz de 27 anos perder a mão direita e acionar o patrão – um idoso de 80 anos – na Justiça. A indenização cobrada? R$ 1.381.239,37. Mas o juiz que pegou o caso decidiu que o culpado por tudo foi unicamente o próprio trabalhador.
O incidente ocorreu na zona rural de Nova Brasilândia (200 km de Cuiabá). A sentença é do juiz Paulo Cesar Nunes da Silva, que ainda determinou que o rapaz pague pelo as custas do processo.
O acidente
O jovem trabalhava na fazenda do idoso desde agosto de 2017. Foi contratado para fazer serviços gerais, como reparar cercas, capinar terrenos, pulverizar venenos, dirigir trator e ajudar no manejo de gado.
No dia 23 de abril de 2019, ele foi para o pasto na companhia do vaqueiro. Depois de quatro horas no local, já por volta das 11h da manhã, ele viu uma novilha ferida. Resolveu, então, capturar o animal com um laço para tratá-la.
O bicho, no entanto, correu e o laço acabou cortando o punho do empregado de forma bastante grave.
O patrão não estava na fazenda e no local não havia sinal de telefone. Por isso, o próprio vaqueiro o levou até outra fazenda próxima e, de lá, o rapaz foi levado até Nova Brasilândia. Percorreram uma distância de aproximadamente 60 quilômetros.
No caminho, o trabalhador conseguiu falar com o patrão e, no processo, alegou que o idoso não lhe ofereceu apoio de imediato.
Já no Pronto-Atendimento, a decisão dos médicos foi de encaminhar o rapaz para Várzea Grande. O trajeto foi feito de ambulância, o que fez com que ele chegasse ao hospital somente 5 horas após o acidente.
Ele foi submetido a vários exames e procedimentos e ficou 13 dias internado. Por fim, os médicos acharam que a melhor decisão era amputar a mão na altura do antebraço. Uma cirurgia que ocorreu no dia 2 de maio.
Por conta da situação, ele precisou ser afastado do trabalho e passou a recebeu auxílio doença por acidente de trabalho do INSS (Instituto Nacional de Seguro Social).
O processo
Em agosto de 2019, o trabalhador entrou com processo contra o patrão. Na ação, alegou que um dos motivos para a perda da mão seria a demora no atendimento médico. Ele culpava o patrão por uma possível omissão de socorro imediato.
A defesa do rapaz argumentou que a amputação trouxe danos irreversíveis e graves ao psicológico dele.
“Nesse aspecto, não se pode negar que o fato mudou completamente a vida do Reclamante, ceifando-lhe a força de trabalho e, por conseguinte, boa parte das possibilidades de firmar objetivos, persegui-los e alcançá-los”, diz trecho do processo.
Com a justificativa de que a situação seria “humilhante e penosa”, a defesa pediu que o patrão fosse condenado a pagar R$ 200 mil por danos morais, acrescido de juros e correções monetárias.
Mas não apenas isso. Havia também um pedido de indenização por dano estético. Segundo a defesa, o rapaz foi exposto ao ridículo “pois, fora lhe comprometida a harmonia física, sua imagem externa, além das demais complicações em seu organismo”.
À época do acidente, ele tinha 26 anos, o que foi apontado como um agravamento. A alegação seria que nessa idade ele ainda não teria laços afetivos e sociais formados, como uma pessoa de idade avançada teria.
Com isso, o rapaz pediu mais R$ 80 mil.
Pensão vitalícia
Mas o acidente também deixou o rapaz incapaz de exercer suas atividades de antes. E mesmo que viesse a conseguir outro emprego, a falta da mão direita – ele é destro – dificultaria sua habilidade em qualquer outro ofício, alegaram os advogados.
Por isso, também foi requerido o pagamento de danos morais, com uma pensão vitalícia calculada em cima de seu último salário, R$ 2 mil, ou um percentual apontado por uma perícia.
Para cálculo do valor, a defesa solicitou que fosse utilizada a idade considerada limite da expectativa de vida no Brasil, cerca de 75 anos. Sendo assim, o rapaz receberia o salário pelos próximos 48 anos, 9 meses e 8 dias de sua vida.
Os próprios advogados calcularam o valor. Consideraram 70% do salário do rapaz, mais o 13º de todos os anos que ele teria pela frente e o adicional de férias. Chegaram a quantia de pouco mais de R$ 908 mil.
Para finalizar, o rapaz ainda pediu R$ 12.480 para pagar por assistência psicológica. E, claro, os R$ 180 mil para parar os honorários do advogado, mesmo tendo recorrido à Justiça gratuita.
No final das contas, a indenização que o patrão teria que pagar, se condenado, chegaria aos R$ 1,3 milhão.
Ao todo, ele pediu que a Justiça obrigasse o patrão a indenizá-lo em R$ 1.381.239,37.
Defesa do patrão
A primeira coisa que a advogada do idoso, Stephanie Paula da Silva, alegou foi que o empregado não tinha como trabalho principal a lida com o gado. Pelo contrário, ele estava lá meramente como ajudante do vaqueiro.
Outra argumento utilizado foi de que todos os funcionários da fazenda estavam orientados a não laçar os animais. No caso de encontrar algum ferido, deveria ser utilizada uma medicação à distância.
Um depoimento do vaqueiro, inclusive, sustentou a afirmação de que o próprio patrão já havia corrigido o empregado acidentado anteriormente, ao vê-lo usando da prática do laço.
Sobre a omissão de socorro, consta nos processo que, apesar de o patrão não estar no local para ajudar imediatamente, seu funcionário socorreu o colega assim que ocorreu o acidente. E que, assim que informado, o patrão passou a acompanhar o empregado.
Um documento, assinado pelo coordenador de segurança do Pronto-Socorro de Várzea Grande, atestou, por exemplo, que o fazendeiro esteve presente por vários dias buscando informações e dando auxílio ao rapaz, inclusive fora do horário de visitas.
O patrão também esteve presente no dia em que a perícia do INSS foi realizada.
Quanto ao dano estético, a defesa reconheceu que a dor pela perda de um membro é inevitável, mas que isso não faz o patrão culpado pelo acidente.
Quanto ao dano material, a advogada contestou, alegando que a pensão vitalícia só seria justa se o patrão tivesse culpa exclusiva pelo ocorrido com o rapaz.
Alegou também que o trabalhador já receberia auxílio do INSS, algo que só era possível devidos aos impostos antes pagos pelo patrão.
Sendo assim, se a pensão fosse determinada, o rapaz teria sua renda duplicada e o patrão uma pena dura, já que os cerca de R$ 900 mil teriam que ser pagos de uma única vez. Além disso, faria o idoso se tornar incapaz de manter os demais empregados da fazenda.
Quanto às despesas médicas, a defesa do patrão lembrou que foram custeadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e que, se “devolvidas” ao empregado, representariam um enriquecimento ilícito da parte dele.
Por fim, argumentou que não havia razão para pagamento de honorários advocatícios, visto que o rapaz pediu o direito à justiça gratuita.
A audiência
Em audiência realizada em março de 2020, os envolvidos disseram o mesmo que os advogados já haviam apresentado no processo.
A defesa do empregado, no entanto, acrescentou que o cavalo que o rapaz montava no dia do acidente seria velho e estaria cansado e que o rapaz jamais teria recebido instruções da parte do patrão sobre o manejo do gado – o que foi contestado pela advogada do idoso.
O vaqueiro que acompanhava o acidentado no dia do ocorrido, no entanto, também foi chamado para depor e confirmou o que não havia necessidade de imobilizar o animal.
A sentença
Diante dos depoimentos e de todas as provas, o juiz Paulo Cesar Nunes da Silva decidiu imputar ao próprio empregado a culpa pelo acidente.
“Ora, se, de um lado, o empregador deve zelar pela segurança e saúde dos empregados, também estes, de outro lado, devem ‘observar as normas de segurança e medicina do trabalho’ e as instruções e orientações que lhe forem passadas pelo empregador”.
O magistrado também entendeu que o patrão não foi omisso quanto ao socorro e que, como não havia culpa dele, não teria porque ele arcar com os custos médicos.
Ao inocentar o patrão, o juiz julgou improcedentes os pedidos de indenização por danos materiais, morais e estéticos.
Quanto ao pagamento do advogado que defendeu o empregado, o juiz condenou o próprio acidentado a arcar com o custo. O rapaz, aliás, só escapou da dívida por que o magistrado atendeu o requerimento pela justiça gratuita, dada sua condição financeira.