Detalhes podem mudar tudo. A história da França poderia ter sido outra se a rainha Maria de Médicis não se esquecesse de trancar a porta do recinto onde conversava com o rei Luís XIII, seu filho, e tramava a queda do cardeal Richelieu.

O cardeal dirá depois: “Deus providenciou uma porta destrancada para que eu me defendesse de quem tramava a minha ruína”. E a rainha, já exilada, morando de favor na casa do pintor flamengo Rubens, de quem comprara uma  série  magnífica de telas barrocas, hoje disponíveis no Museu do Louvre, exclamará: “Se eu não tivesse esquecido de fechar um ferrolho, o cardeal estaria perdido”.

[featured_paragraph]Era o dia 10 de novembro de 1630. A rainha falou tudo o que quis contra Richelieu, e o rei ouviu a catadupa de acusações e também a defesa feita por seu ministro, ali presente por obra de um detalhe. [/featured_paragraph]

Depois de ouvir todos os impropérios impulsivos da rainha e as argumentações pacientes do cardeal, o soberano retirou-se para Versalhes, onde foi meditar no pavilhão de caça, que mais tarde seu filho, Luís XIV, transformaria no famoso palácio.

Mas se nada disso acontecesse, provavelmente o filósofo e escritor iluminista Charles-Louis de Secondat, mais conhecido por Montesquieu, não teria feito uma crítica tão sagaz e com tão belas metáforas como a fez em seu romance Cartas Persas, no século seguinte, em que passa, não um ferrolho, mas uma verruma no absolutismo francês que o cardeal Richelieu consolidou, reunindo nas mãos do soberano francês o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, como se fossem um só poder, o do rei!

Cartas Persas compõe-se de cento e sessenta cartas. Montesquieu usa um recurso muito criativo: por meio de cartas trocadas entre os personagens, faz críticas mordazes, mas talvez até contidas aos olhos de hoje, aos usos e costumes, especificamente à submissão de todo o povo francês a um soberano que, não apenas reinou como senhor absoluto, como levou o filho a não mentir quando disse, já seu sucessor: “O Estado sou eu”. E era mesmo!

Alguns trechos parecem espelhar, não apenas os franceses dos séculos XVII e XVIII, mas a muitas outras nacionalidades, daqueles séculos e dos posteriores: “Governava-os um rei de origem estrangeira. Depois de matá-lo, juntaram-se para formar um governo e, ao ao fim de muitas dissensões, nomearam magistrados, que depois também trucidaram”. 

Alguns diálogos parecem ocorrer no Judiciário brasileiro. Diz um sábio: “O que eu disse é certíssimo porque o digo eu”. Diz outro: “O que eu não disse é falso, porque não o digo eu”.

Há outros detalhes tão pequenos também de outros países: “O caráter distintivo de ambas as nações (Espanha e Portugal) manifesta-se pelos óculos e pelos bigodes. Os óculos são a prova demonstrativa de saber: quem os usa cansou a vista de tanto ler. Todo nariz com óculos é o nariz de um sábio. Um famoso general português na Índia, precisando de dinheiro, penhorou o bigode aos habitantes de Goa, pedindo emprestado vinte mil dobrões, e depois honrou o seu bigode”.

Outros assuntos, inseridos na correspondência como causos ou lendas, enriquecem a a troca de cartas. Será que, perdido num canto da memória da então presidente Dilma Rousseff, não estava a lembrança do pequeno trecho da p. 214 da edição brasileira (São Paulo, Martin Claret, tradução de Mário Barreto, 2009), que trata do trabalho de estocar ventos? “Assim que cresceu, ensinou-lhe o pai o segredo de encerrar em odres os ventos e vendê-los depois aos viajantes”.

[featured_paragraph]Em troca de cartas com as esposas revoltadas no serralho de Ispahan, na Pérsia, diz o viajante: “O vosso primeiro eunuco Solim não é para vos guardar, mas para vos castigar,  e julgará vossas passadas ações“. Responde uma delas: “Se sou castigada por um eunuco, o tirano és tu e não o instrumento da tirania”.[/featured_paragraph]

Dá fecho ao romance o suicídio da favorita do harém: “o veneno me consome e até o ódio que te tenho desmaia comigo”.

PS. Dedico este texto a Esperidião Amin, que me providenciou o texto integral da edição brasileira, recomendando-me com entusiasmo a leitura durante amena prosa em Florianópolis. Ao aceitar a sugestão dele, minha memória brotou e lembrei que alguns trechos me eram conhecidos da edição francesa, que depois confirmei com Rosa Freire d´Aguiar, viúva de Celso Furtado. 

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