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Como julgar Bolsonaro? Isaiah Berlin e o bom político

A diferença entre um político e um engenheiro social

7 minutos de leitura
Como julgar Bolsonaro? Isaiah Berlin e o bom político
(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

Nestes tempos de medo e confusão, e de muita cegueira política, temos que nos perguntar como julgar nossos políticos, encarregados de decisões que, mais do que nunca, vão ter um efeito profundo em nosso futuro.

O que é um bom político? É uma pergunta que muitos filósofos se fazem. Aristóteles responde a ela tanto no seu livro sobre ética, como no livro sobre política. Ele define o termo além do  terreno político. Ele fala do megalópsūkhos, o homem magnânimo, ou literalmente o que tem  uma grande alma.

Para ele, este ser humano é virtuoso, temperante, sábio, bom. A bondade, como as demais virtudes é uma condição da alma. Não basta fazer o bem, o grande homem gosta do bem. Esta condição por si só teria que eliminar um grande número de  políticos brasileiros do rol de pretensos bons homens.

Ódios partidários, disputas comezinhas, ressentimentos e traições, e principalmente a corrupção sórdida que coloca interesses particulares em primeiro lugar, não tem espaço numa grande alma política.

Mas precisamos sair da discussão viciada que culpa a corrupção por tudo, reduzindo o ideal político à estreiteza da integridade moral. Não roubar não é um mértio, nem torna ninguém um grande homem. Devem existir mais qualidades para o bom político. É fácil perceber o mau político. Achamos que eles sofrem de uma espécie de cegueira. “O político fulano de tal é cego!”- dizemos. Será que não vê o povo? Será que não percebe o momento, por que prefere a sua paixão partidária a fazer a coisa certa?

Mas o que é esta “coisa certa?” O que o político cego está deixando de perceber?

O filósofo político Isaiah Berlin faz referência a esta capacidade essencial, que ele chama de “julgamento político.” O que é isto? É um conhecimento específico? Seria um conhecimento da teoria da social ou ciência política, como alguns filósofos do passado parecem inferir? Conhecer teorias sobre o funcionamento político da sociedade capacita o homem público?

A teoria é suficiente ou seria necessário um conhecimento mais técnico? Fazendo uma analogia com o conhecimento médico de anatomia, Berlin pergunta se um conhecimento técnico pode prescindir de uma percepção prática. Ele resolve que não. O médico pode saber tudo de anatomia, mas se não tem conhecimento prático dela não é capaz de deter doenças.

Sejam os pensadores tecnocratas, como Fourier ou Comte, ou os dogmáticos como Hegel e Marx, todos incorrem no mesmo erro, diz Berlin. Eles não sabem como é construída a verdadeira percepção sobre a natureza da sociedade que inspira o político eficaz. Perdidos no teoricismo dos iluministas do século XVIII, intelectuais, cientistas políticos e até jornalistas perderam a capacidade de identificar a realidade, separando-a da mera abstração, de princípios,  das descrições anatômicas,  meta-teóricas, das projeções matemáticas e principalmente das utopias e  dos romantismos.

O conhecimento adquirido formalmente que é  louvado pelos iluministas prescindiria de outras habilidades, e de maneira científica e técnica, conduziria o político a tomar decisões acertadas. O problema é que políticos desta natureza são na verdade engenheiros sociais e não servidores do povo. Segundo Berlin, o socialismo-científico de Lenin e Stalin, por exemplo, gerou líderes de seita, fanáticos e indiferentes ao povo, ao invés de técnicos capazes.

Aristóteles, ao falar da capacidade política, refere-se a uma qualidade, a phrónēsis. A tradução correta para esta palavra não é “sabedoria”, como alguns dicionários indicam, mas sim “razão prática.”

Ele fala de uma capacidade de raciocínio ou intuição prática, que inclui a deliberação e a síntese, não apenas a simples análise do problema. Esta capacidade permite ao político intuir as implicações concretas das decisões que toma. Para Berlin, o político que possui esta qualidade calça os sapatos do povo, e sabe sentir como as decisões vão afetar de maneira concreta as pessoas que está pretendendo guiar.

Essa habilidade é contextual, não é um princípio que se aplica de maneira geral. Ela revê cada momento pelo que é.  Essa capacidade política não é mágica, ou mística tampouco: é uma espécie de percepção empírica da realidade social. Ela implica na “integração de uma quantidade vasta de informações em constante mudança, reconhecendo nelas possibilidades passadas e futuras, e no processo de convertê-las em experiência”.

Ela implica em discernir o que o político pode fazer pelos outros e o que os outros podem fazer por si mesmos. Isaiah Berlin compara os políticos assim aos bons escritores, que demonstram uma percepção extraordinária para a textura da vida, que são capazes de colocar em palavras o que outros apenas intuem.

Aplicando isso a nosso contexto, só posso pensar que o Brasil é um país dominado hoje por pessoas sem a menor phrónēsis. A arrogância e distanciamento da realidade dos homens públicos brasileiros é coisa de ficção de distopia. Políticos como Dória, como o governador do Pará Helder Barbalho, como Wilson Witzel, ou até os  ministros do STF, que estendem a sua tenda de poder para acampar todas as instâncias decisivas do país, não são servidores públicos, são engenheiros sociais segundo a tradição de Robespierre e Himmler.

Nossos homens de mídia não ficam atrás. Vi o repórter do Antagonista, Claudio Dantas, desdenhando do presidente quando Bolsonaro cruzou a avenida, no dia 7 de maio, para ir ao prédio do STF com um grupo de empresários e ministros. Sua intenção era fazer um apelo desesperado ao órgão que lhe tirou completamente a possibilidade de tomar decisões pelo país na questão pandemia. A economia do país está agonizando, era seu apelo.

Mas Claudio Dantas é um homem assim como querem os iluministas. A sua teoria sobre o que seja a “boa política” não inclui a vida prática. Claudio Dantas desdenha do desespero do presidente, e assim desdenha do desespero do povo que o presidente claramente representa.

Outros jornalistas, mesmo os mais comedidos como Zé Maria Trindade, erram da mesma maneira ao repetir o mote “falta gestão geral”, clichê vazio de significado, e que só serve para tentar invalidar as ações do presidente. Quem não percebe o povo, como eles, não sabe também reconhecer o que seja liderança política.

Bolsonaro reduziu a sua participação pública a um espetáculo teatral diário. Isto incomoda os teóricos profundamente. Mas as provocações teatrais de Bolsonaro não são fruto de uma personalidade histriônica, são ações políticas.

O presidente, roubado de suas funções executivas constitucionais por um Congresso que se recusa a colocar em votação medidas a ele enviadas, e por um STF que veta suas ordens, continua, no entanto, liderando o país.. Lidera agora através de uma espécie de teatro da liberdade, que encena no palco do Planalto.

Num país onde engenheiros sociais se esmeram em criar medidas para controlar aonde o povo vai, como vai, o que usa, o que diz e até o que pensa, o presidente ainda insiste em ser livre. Insiste em manifestar publicamente o que ele sabe ser a percepção do povo: as medidas sanitárias adotadas pelos tiranos que mantêm o país trancado a sete chaves tem mais a ver com a ambição pessoal destes homens, do que com a saúde da população.

Aristóteles talvez não desse a Bolsonaro o título de homem magnânimo: falta-lhe finesse. Ele se vinga, se entorta, se irrita, não é comedido o bastante para o grego que admirava uma personalidade mais moderada.

Mas acredito que tanto ele quanto Isaiah Berlin com certeza reconheceriam em Bolsonaro um verdadeiro homem público.  Aristóteles veria que o que lhe falta em moderação, sobra-lhe em coragem. E por mais absurdo que pareça à classe intelectual brasileira, de acordo com Berlin fica claro que o presidente é um bom político, alguém que possui a qualidade que separa um servo do povo  de um perigoso engenheiro social.[1]

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[1] Artigo inspirado no clássico ensaio de Isaiah Berlin: “On Political Judgement”, nas reflexões de Aristóteles em Política e Ética de Nicômano e na aula do Dr. Steven B. Smith, de Yale.

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