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Comida quilombola: cozinhar também é um ato de resistência

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Comida quilombola: cozinhar também é um ato de resistência
"Afogadão" sendo preparado na comunidade de Retiro, em Barra do Bugres

Neta de Iéia e Paié, quilombolas e benzedores da região de Macacos em Nossa Senhora do Livramento (a 42 km de Cuiabá), a cientista social, pesquisadora e afroprodutora Jackeline Silva inspirou-se pelos momentos pessoais compartilhados na cozinha para elaborar um estudo precioso sobre comida e resistência.

Ao visitar nove comunidades do Vale do Rio Cuiabá, ela foi reavivando as memórias de infância em família enquanto acompanhava os entrevistados na cozinha.

Com apoio de outros especialistas, que colaboraram com seus textos, organizou o livro “Afro Paladar”, o dedicando à avó Maria Otávia da Silva e José Marcelino da Silva, a Iéia e o Paié (in memoriam).

Apostando na experiência gastronômica da comida afetiva idealizou esse que é o seu primeiro projeto dedicado ao assunto. “De maneira intuitiva, o ato de se alimentar nos conecta à subjetividade, a nossas memórias, aos saberes e neste caso, a símbolos da nossa ancestralidade”.

Partindo dessa ideia é que Jackeline se empenha em revelar a essência da culinária quilombola e dos seus desdobramentos políticos. Especialmente neste dia, em que é celebrado o Dia da Consciência Negra.

“O recorte da culinária quilombola é um contexto apropriado para se falar em visibilidade de homens e mulheres quilombolas. Sobre uma tecnologia social ancestral que remete à resistência dos quilombos e se faz perceptível nos tipos de alimentos, no cuidado com a terra, na comunhão entre os cozinheiros, nos utensílios utilizados, tudo remete à luta pela preservação de sua cultura. São nestes aspectos que a gente se conecta com os saberes e sabores ancestrais”, explica.

O afogadão é feito de carne com mandioca. Aqui, a menina acompanha a mãe na cozinha em Retiro / Foto: Luzo Reis

Curador do livro, o chef baiano Alicio Charoth – que trabalha com projetos de culinária nas comunidades quilombolas da Bahia, reforça a relevância do projeto. Para ele, a relação do quilombola com o alimento, a terra e a comida dizem muito sobre um contexto social brasileiro.

“Ao longo dos séculos as comunidades quilombolas foram invisíveis e neste contexto, muitas das práticas foram se perdendo ou mesmo, ficaram esgarçadas do tecido identitário. Contudo, muitas se mantiveram, e hoje, fruto da aproximação e de pesquisas, muitas destas informações vêm à luz, o que possibilita um maior conhecimento deste grupo, abrindo e fortalecendo o diálogo à diversidade cultural brasileira. Devemos encarar a culinária quilombola como uma forma de resistência a um sistema de invisibilidade que mantém estes grupos étnicos à margem do estado brasileiro”.

Cumplicidade

Nas cozinhas dos quilombos o sentimento comunitário tem muito valor e a casa, é o território do acolhimento e reforça também, os laços ancestrais.

“E as festas religiosas também realçam esse caráter de cumplicidade. Nezinho, de Mata Cavalo de Cima me falou que as ‘tiradeiras’ de reza saíam de Jacaré dos Pretos para ir para comunidade dele para ajudar nos preparativos. Ele estava me mostrando como se fortalecem os vínculos afetivos e os laços de solidariedade que muitas vezes, extrapolam as relações sanguíneas ou de parentesco”.

“Afogadão”, cabeça de boi assada e banana

Ao avaliar os movimentos gastronômicos da contemporaneidade, Jackeline cita três momentos efervescentes: o primeiro, do consumo desenfreado da “comida rápida”; logo depois veio a gourmetização com a proposta de sofisticar, ainda que o prato tenha ingredientes tradicionais. Mais recentemente, uma conceito que mais se aproxima da culinária quilombola é o “slow food”.

Jackeline explica que os vínculos com a natureza, o cultivo orgânico, a preparação da comida, de uma maneira mais afetiva – característicos dessa corrente – compõem os modos de produção dos quilombolas.

Por conta dessa valorização do simples, é que muita gente vê um clássico da culinária quilombola, o ‘afogadão’, além da carne com mandioca. “Tem alimento que vem do território ancestral, carregado de identidade”, explica.

Assim como a banana, que pode ser alvo de um próximo estudo. “É um ingrediente que diz muito sobre a culinária quilombola. Ela é assada, cozida, frita e dá origem a vários subprodutos que são comercializados por associações quilombolas e que se tornaram uma fonte de renda”. Entre esses produtos, destacam-se bananas chips fritas, licores, farinha de banana e artesanatos à base da palha da bananeira.

Outro clássico é a cabeça de boi assada. “É uma demonstração da capacidade de se aproveitar tudo o que o alimento oferece”.

Foto: Luzo ReisMas quanto ao conceito de “slow food”, Jackeline o utiliza como referência ao tratar de semelhanças subjetivas, pois na prática há uma diferença social.

“Chefs e restaurantes tentam atrair sua clientela com o apelo da cozinha mais afetiva, mas em um contexto glamurizado. Se assemelha a um processo de “embranquecimento” da cultura tradicional”.

“Porque as se apropriam financeiramente de todos esses saberes e enquanto estão ganhando muito dinheiro com produtos orgânicos, naturais, ensinando agroecologia… Mas os detentores da fonte, como por exemplo, os quilombolas, de forma geral, vivem tudo isso há muito tempo, são essas práticas que constituem o coletivo. E é claro, pouco são beneficiados”, alerta.

E para preservar a exclusividade dessas comunidades, entre as páginas da obra literária ela optou por não reproduzir receitas. “Como pesquisadora apenas dou a visibilidade, pois são eles que precisam falar sobre si mesmos. Da forma como vivem, sobre o que produzem e do quê e como se alimentam”.

Mulheres negras empreendedoras

Para Jackeline, o dia de hoje é pertinente para que haja uma mudança de mentalidade. “Temos que levar em consideração que a maioria dos trabalhadores domésticos no país são mulheres negras. E elas cozinham e no imaginário popular, esse é o lugar reservado a elas. É que desde os tempos coloniais, esse é o espaço que ocupam. Talvez por isso seja tão difícil, para algumas pessoas, vê-las em outras posições”.

A pesquisadora e militante do movimento negro, avalia que se não houver uma reflexão, revisão de valores, dificilmente estas mulheres vão conseguir ascender sem enfrentar preconceito ou deixarem de ser vítimas de racismo.

“É preciso entender que podem continuar desenvolvendo seus trabalhos como profissionais domésticas, de maneira digna, mas que as mulheres negras têm muitos espaços ainda para ocupar, como chef ou como empreendedora do ramo, a exemplo”.

Ela dá exemplo de Dona Zilair Martins, de Morro Cortado em Poconé, que tem um comércio onde vende banana frita, licores, pimentas e de Laura, da Comunidade Ribeirão da Mutuca, em Nossa Senhora do Livramento.

“De maneira individual ou por meio de associações, estas mulheres estão empreendendo, garantindo fonte de renda à família, como verdadeiras mulheres de negócio”.

Comunidades quilombolas em MT

As comunidades quilombolas correspondem a um dos grupos sociais que mais necessitam de apoio para manterem vivas suas expressões culturais. Segundo dados da portaria nº 315 de 15 de dezembro de 2017, Mato Grosso possui 77 comunidades de remanescentes quilombolas e deste número, 70 possuem certificação expedida pela Fundação Cultural Palmares, instituição pública vinculada ao Ministério da Cultura voltada para a promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira.

Em sua pesquisa Jackeline percorreu as comunidades Retiro, no território Vão Grande, em Barra do Bugres; Morro Cortado e Campina de Pedra, em Poconé; Ribeirão da Mutuca e Mata Cavalo de Cima, em Nossa Senhora do Livramento; Abolição, em Santo Antônio de Leverger; Lagoinha de Cima e Cachoeira Rica (Peba), em Chapada dos Guimarães e Aguaçu, no Distrito da Guia, em Cuiabá.

Quer adquirir um exemplar de Afro-Paladar? Entre em contato por e-mail: afroprodutora@gmail.com

A autora está radiante porque seu livro vai ser citado em uma obra didática a ser lançada em 2020 pela editora Edebê.

“A repercussão deste trabalho me deixa muito contente, especialmente porque os produtores culturais afrodescendentes são muito desacreditados e sofrem racismo institucional. Esbarramos em inúmeras dificuldades que só são impostas a pessoas negras. Então, é uma grande conquista, especialmente por reforçar o propósito da Lei 10.639/2003 que é sobre a inclusão do ensino de história e de cultura afro-brasileira e da contribuição do negro para a sociedade brasileira”.

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