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Coisas do arco-da-velha

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Coisas do arco-da-velha

O arco-da-velha tem uma origem pagã e outra cristã, mas ambas designam o mesmo fenômeno: o arco-íris.

No primeiro caso, os personagens principais são a deusa egípcia Ísis, que viajava linda e luminosa pelos céus com seu diáfano vestido de sete cores, e seu marido Osíris.

O tecido era tão belo que Cleópatra vestia-se como Ísis em suas aparições públicas, roupa que entretanto dispensou para apresentar-se ao imperador romano Júlio César, trocando-a por um tapete no qual veio enrolada nua para o primeiro encontro.

O culto de Ísis estendeu-se a todo o mundo greco-romano antigo. Quando Osíris morreu, a viúva chorou tanto que suas lágrimas deram causa às cheias do rio Nilo. Mas, comovida, a deusa recorreu a secretas magias que somente ela conhecia e ressuscitou dentre os mortos o irmão com o qual se casara, iniciando vida nova e dando ensejo à bela metáfora dos ciclos agropecuários que dependem simultaneamente da terra e do céu para a fertilidade de homens e de animais, e para as plantações e colheitas.

No segundo caso, a expressão arco-da-velha foi encurtada de Arco da Velha Aliança, e os personagens principais são Deus e Noé ao celebrarem um contrato logo após o dilúvio universal. Na verdade, Noé assina por adesão, subscrevendo a cláusula baixada por Deus em Gênesis 9,13: “Ponho o meu arco nas nuvens para que ele seja o sinal da aliança”. O trato era nunca mais destruir a Humanidade pela água. Naquela enchente catastrófica, até Matusalém, que chegara aos 969 anos, morreu afogado.

Coisas do arco-da-velha são, pois, coisas muito antigas. Mas foram acrescidas de um mal-entendido com os verbos serrar e cerrar, e com os substantivos arca e arco, resultando em mudança que alterou o contexto da expressão no Português.

Segundo nos informa De Castro Lopes em Origem de anexins, prolóquios, locuções populares, siglas, etc., existiu antigamente em Portugal um folguedo conhecido por Cerração da Velha. Consistia em escolher uma anciã a quem a comunidade fosse hostil no vilarejo e trancá-la simbolicamente numa pipa, dorna ou tonel, fazendo uma algazarra em frente à casa em que ela morava. O recipiente fazia as vezes de arca.

Todavia o verbo cerrar (fechar) foi ouvido como serrar (cortar com serra) e por isso a rapaziada serrava o recipiente ao som de uivos, marteladas, repiques, pandeiros, gaitas e tambores. Nem faltava, por certo, uma voz masculina em falsete simulando os gritos de dor da velha cortada ao meio.

Outra variação na pronúncia, de arca para arco, mudou a arca da velha para arco da velha. E a expressão, misturando origens pagãs e cristãs, acrescidas de sadismo próprio a certos usos e costumes, de que é outro exemplo a malhação de Judas na noite da Sexta-Feira Santa, consolidou-se em Portugal, no Brasil e em outros domínios lusitanos, fazendo jus ao que Camões preconizara: “Na quarta parte nova os campos ara/ E se mais mundo houvera, lá chegara”.

E a expressão pegou para sempre no Brasil para designar coisas muito antigas.

 

Deonísio da Silva, da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia Brasileira de Filologia, é Doutor em Letras pela USP, professor e Diretor do Instituto da Palavra, na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. É autor de dezenas de livros, entre os quais De onde vêm as palavras e Avante, soldados: para trás (Prêmio Internacional Casa de las Américas). Na companhia do jornalista Ricardo Boechat, apresenta Sem Papas na Língua, na Rádio Bandnews Fluminense.

 

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