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Tenente Scheifer: a história do bom policial que não sobreviveu à polícia

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Tenente Scheifer: a história do bom policial que não sobreviveu à polícia

O “Zero-Um” da turma do Exército, o “Zero-Um” da turma do CFO, o “Zero-Um” de todos os cursos que resolvia fazer. Um militar excepcional e extremamente dedicado, que fazia questão de estudar muito e não para ser melhor que os outros, mas para poder ajudar a todos. Carlos Henrique Paschoiotto Scheifer é lembrado como alguém que sempre fez questão de fazer o que era certo, da melhor forma possível.

“Se a mulher dele parasse em uma blitz que ele estivesse fazendo e ela estivesse sem cinto, ele a multaria sem pensar duas vezes. Depois ele mesmo pagava a multa, mas era o trabalho dele e ele colocava isso em primeiro lugar”, disse um colega.

“Ele era um cara surreal. Quem não puder falar bem dele, vai ficar quieto, porque mal não vai falar. Parece que estava predestinado a morrer, porque o cara era muito fora de série”, afirmou outro um colega de farda.

“Eu sempre tive medo do Carlos Henrique morrer, porque eu sempre soube que ele ia além, eu sempre soube que nunca ia ter nada que fosse parar ele. A busca dele pela justiça, pelo trabalho, era inacreditável a ponto de não ter como mensurar. Só quem o conhecia sabe”, disse a viúva de Scheifer, Tássia Paschoiotto Scheifer.

“Chocou muita gente, porque, assim, vamos pegar por uma ponta que é o lado do Scheifer. Até arrepia de lembrar. Moleque novo, recém-chegado no batalhão, tinha acabado de fazer o curso, acelerado. Moleque muito bom, já tinha sido oficial do Exército, foi ‘Zero-Um’ de academia, um cara totalmente fora da curva, mesmo para os padrões do Bope. Aí você pega o outro lado, os três que estavam com ele, três caras experientes de Batalhão, nenhum recruta, o cara com menos tempo de Bope devia ter uns cinco ou seis anos de muita operação, de muita experiência. Olhando pelo aspecto técnico, foi uma série de erros técnicos, que levaram a esse resultado”, lamentou um policial do Bope.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

No dia 13 de maio de 2017, o tenente Carlos Henrique Scheifer foi assassinado em uma região de mata na zona rural do distrito de União do Norte, em Peixoto de Azevedo (670 km de Cuiabá), durante uma operação em que ele era o comandante. Cerca de 140 policiais foram enviados para a cidade em busca dos supostos assassinos do oficial, quando, na verdade, o tiro que o matou havia saído da arma de um de seus subordinados.

O julgamento do caso começa nessa quarta-feira (03), com base na denúncia oferecida pelo Ministério Público Estadual. Mas, nos bastidores do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) e do Grupo Especial de Segurança de Fronteira (Gefron), batalhões por onde Scheifer passou, há ainda muitas indagações que jamais foram divulgadas.

O LIVRE conversou com policiais que pediram para não ser identificados. Eles contaram tudo que viram, ouviram e viveram na operação ocorrida após a morte de Scheifer, até a divulgação de que o tiro que matou o oficial havia sido disparado pelo cabo Lucélio Gomes Jacinto – e listaram os erros e muito do que aconteceu nos dias que se seguiram ao fato.

A esposa de Scheifer, Tassia Paschoiotto Scheifer, também recebeu o LIVRE e, em meio a muitas lágrimas, fez questão de dizer: “eu não quero fazer sensacionalismo e comoção, principalmente agora que o julgamento está muito próximo; eu quero só a justiça”.

O sonho de ser “caveira”

Scheifer começou a carreira militar no Exército. Depois entrou no CFO (Curso de Formação de Oficiais), foi primeiro da turma, formou-se em 2013, fez vários cursos, ficou por dois anos no Gefron, mas tinha um sonho: entrar no Bope e se tornar um “caveira”.

Ainda no primeiro ano do CFO, conheceu Tássia, na virada do ano de 2011 para 2012, com quem viveu uma intensa história de amor. Em um ano, passaram a morar juntos e foi após um Teste de Aptidão Física (TAF) malsucedido para entrada no Bope que decidiram se casar.

O teste era uma pré-seleção para entrar em um Curso de Operações Especiais em outro estado. Scheifer e mais dois amigos não respeitaram os limites do corpo e quase morreram. Os três foram parar na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), sendo que um deles ficou 30 dias internado.

“Meu marido ficou lá uma semana. E nisso, quando eu entrei na UTI, a primeira vez que ele me viu, ele falou: ‘casa comigo pelo amor de Deus, casa comigo’. Eu falei: ‘eu não vou casar, você vai me deixar viúva’. Aí ele veio, fez o pedido para os meus pais na Páscoa. E eu tinha falado para ele que a minha condição era ele não voltar para o Bope. Fomos muito felizes na fronteira. Quando eu digo ‘fomos’, eu e ele, é porque a gente tinha o hábito de dizer que a nossa vida era um ciclo: se eu estivesse em sintonia com ele no serviço dele, ele ia estar bem e assim sucessivamente. Mas aí não tinha jeito, ele queria o Bope de qualquer jeito”, contou Tássia.

Scheifer voltou a treinar e em 2017 conseguiu entrar no Bope. Passou por um treinamento de quase cinco meses longe de Tássia, com quem havia se casado em 2016. Ele se formou e teve 45 dias com ela antes de se apresentar ao Bope, no dia 02 de maio de 2017. Onze dias antes de ser morto.

“Novo Cangaço”

No dia 12 de maio de 2017, na zona rural de Peixoto de Azevedo, policiais militares tentaram abordar duas caminhonetes com suspeitos de estarem planejando crimes na modalidade “novo cangaço” – em que bandidos fortemente armados fecham uma pequena cidade e fazem os moradores reféns para assaltar bancos.

Consta no Inquérito Policial Militar que um dos veículos era uma Nissan Frontier de cor escura e o outro uma Mitsubishi L-200 Triton branca. Os policiais tentaram acompanhar as duas caminhonetes, mas em um momento perderam a Frontier de vista e continuaram seguindo somente a L-200.

Durante a perseguição, os suspeitos perderam o controle da caminhonete e quatro homens desceram do veículo atirando contra os policiais, chegando a acertar a viatura, que ficou danificada ao ponto de impedir a continuação da ocorrência. Mais tarde, a caminhonete foi encontrada com ajuda de militares de cidades vizinhas.

Como a suspeita era de que se tratava de um crime de novo cangaço, o Bope foi acionado e, como de praxe na instituição, uma equipe foi enviada à frente, formada pelo tenente Scheifer (no papel de comandante), o 3º sargento Joailton Lopes de Amorim, o cabo Lucélio Gomes Jacinto e o soldado Werney Cavalcante Jovino (hoje cabo). As demais equipes do Bope chegariam à cidade em seguida, de carro.

Hoje, segundo um policial do Bope que aceitou falar sobre o caso com o LIVRE e acompanhou toda a operação, os militares já sabem que o crime era outro. “Eles iam roubar um avião de garimpo de ouro, um avião que vinha descendo do Sul do Pará, recolhia ouro de vários garimpos, parava ali no Norte de Mato Grosso, Peixoto de Azevedo, Matupá e Guarantã, recolhia o ouro e ia embora. Eles iam roubar muito ouro. Então não era um roubo a banco”, disse o policial.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

O perfil da equipe

Para o policial do Bope, o primeiro erro do caso Scheifer foi a escolha dos militares para a montagem da equipe. Independentemente se fosse um caso de novo cangaço, ou roubo de ouro, era uma situação de sensibilidade devido à extrema violência usada pelos criminosos, que estão sempre com armas de grosso calibre, como fuzis, e, no caso do dia 12 de maio de 2017, já tinham até trocado tiros com a polícia, deixando uma viatura bastante danificada.

“Então, mesmo sendo o Bope, quando você monta uma equipe para ir para uma ocorrência dessa, isso tem que ser bem organizado. O Scheifer tinha acabado de chegar no batalhão. Muito embora ele tinha o requisito técnico para estar no Bope, que é o curso, ele não tinha a experiência necessária para enfrentar uma ocorrência dessa. Não falo enfrentar no sentido de coragem, mas no sentido técnico, de organizar o cenário para tudo isso”, afirmou o militar.

Ele contou que, quando chegou ao Bope, assim como vários de seus colegas, em suas primeiras ocorrências ia acompanhado de alguém mais experiente para o orientar, o que não aconteceu com Scheifer. Ele acredita que essa falta de experiência, que sobrava nos demais membros da equipe enviada, sem o acompanhamento de um orientador, foi o primeiro erro no caso.

Na ausência de Scheifer, a voz de comando da equipe seria do 3º sargento Joailton Lopes de Amorim, que deveria ser o elo entre o oficial e os praças. Porém, segundo o policial do Bope, Lopes nunca agiu com postura de comandante. “Era aquele cara assim: ‘se manda, faz, se não manda, não faz’. Mais um soldado, que só recebia mais”.

Por outro lado, o cabo que estava na equipe, Lucélio Gomes Jacinto, era conhecido, segundo o policial, como um militar “extremamente acelerado, que sempre tomava iniciativa, muito bem treinado e que tinha a agressividade acima da média”.

E, por fim, o soldado Jovino, que já tinha experiência, assim como os outros dois colegas, mas lidava bem com hierarquia, “era um dos militares mais queridos do Bope, muito técnico, com perfil de operador e sempre com muita vontade de fazer as coisas certas e aprender”.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

13 de maio de 2017

“Eu já estava sentindo”, assim começa o relato de Tássia sobre o dia em que se tornou viúva. No dia 13 de maio de 2017, ela acordou cedo, arrumou o café do marido e o viu sair extremamente feliz para sua primeira missão. “Ele estava muito empolgado. Eu falava: ‘não pode ser que alguém está indo para uma missão no meio do mato, empolgado’. Parecia uma criança indo para o primeiro dia de aula, era inacreditável. E eu fiquei muito brava, porque eu não queria que ele fosse. Fiquei brava com a situação, mas não briguei com ele”, lembrou Tássia.

Scheifer saiu de casa às 5h30. O tenente precisava passar por uma cirurgia para colocar três pinos no ombro, mas se recusava a ficar afastado para se recuperar e, por isso, estava fugindo até mesmo de fazer os exames pré-operatórios. Sob pressão da esposa, fez. O último exame do marido foi eternizado por ela em uma tatuagem. “Ele foi para a operação policial tendo que se operar, mas ele foi feliz como você nem imagina”.

No dia 13 de maio de 2017, a caminhonete Nissan Frontier de cor escura, que tinha conseguido fugir da Polícia Militar um dia antes, foi encontrada próximo a um posto de combustível na cidade de Matupá.

O motorista do veículo, Agnailton Souza dos Santos, informou à PM onde estavam os demais envolvidos na fuga do dia anterior, que estavam em sua companhia. Já com a equipe do Bope presente, policiais da cidade e a equipe de Scheifer foram até a casa indicada pelo suspeito e encontraram dois suspeitos: Jefferson Lopes Reis e Edmundo Souza dos Santos.

Consta no inquérito policial que eles portavam diversas armas e munições de grosso calibre e que um terceiro suspeito, identificado como Marconi Souza Santos, teria tentado fugir, estando armado, e teria apontado essa arma para o cabo Jacinto, que atirou contra o suspeito com um fuzil e o matou.

Discussão e voz de prisão

A versão apresentada acima é a oficial. Porém, consta até mesmo no processo sobre a morte de Scheifer que o registro do boletim de ocorrência sobre a morte de Marconi causou uma briga entre o tenente e o cabo Jacinto.

“Conforme restou apurado nos presentes autos, a lavratura do supracitado boletim de ocorrência foi objeto de divergências e até mesmo desentendimento entre a vítima ten Scheifer e o denunciado cb PM Lucélio Gomes Jacinto, pois, há fundadas suspeitas que fora inserida, no referido B.O., declaração falsa, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, no que diz respeito às circunstâncias da morte do indivíduo Marconi Souza Santos, pois elementos informativos colhidos sobre tal ocorrência apontam, em tese, para indícios de conduta não amparada por alguma excludente de ilicitude”, diz trecho do processo.

Um soldado da Polícia Militar, que estava com a equipe e irá depor no próximo dia 03, chegou a ver a discussão entre os dois policiais e o momento em que Jacinto e Jovino teriam chegado a falar: “Esse comando é muito legalista? O que você acha?”, referindo-se ao fato – já citado – de Scheifer sempre prezar pelo que era correto.

“O que chegou para a gente, pelos próprios policiais de lá, foi o seguinte: os caras estavam rendidos já, armas dos caras entregues e desmontadas, o Scheifer estava organizando para levar todo mundo para a delegacia, aí o Jacinto: ‘ah, tem que matar’ e pum, matou o cara. Se fosse só a equipe do Bope não ia dar nada, ia fazer o BO e acabou. Mas os policiais da cidade que estavam lá viram e ouviram a discussão”, relatou o policial do Bope.

A discussão entre o tenente “legalista” e técnico, e o cabo com fama de “indisciplinado”, teria chegado ao ponto de Scheifer dar voz de prisão a Jacinto, ordem confirmada ao LIVRE por mais de um policial, mas que nunca foi oficialmente divulgada.

Ainda tentando fazer o que acreditava ser certo, Scheifer teria ligado para o comandante do Bope da época, tenente-coronel José Nildo Silva de Oliveira, hoje à frente do Gefron, e contado sobre a situação. O registro da ocorrência acabou por volta das 16 horas. E um dos dois suspeitos presos, Agnailton Souza dos Santos, deu informações sobre os suspeitos que haviam trocado tiros com a equipe militar de Peixoto de Azevedo um dia antes, em uma L-200 Triton.

A equipe de Scheifer, cansada da viagem, exausta da ação e estressada pela discussão, poderia esperar o restante das equipes do Bope chegar para dar continuidade às buscas, mas era a primeira missão do tenente. Ele acabou indo atrás dos outros bandidos na que seria sua última ocorrência, pegando 160 km de uma estrada de chão, às 16 horas.

“O Scheifer tinha acabado de chegar do curso, assim como eu era na minha época. Então, se você chega e fala ‘ali naquela casa tem 50 ladrões armados de fuzil, bomba, explosivo’, eu ia lá meter o pé, entrar sozinho e trocar tiro, porque o curso faz isso com a gente”.

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As várias versões

A equipe se deslocou até a zona rural na região do distrito União do Norte, em Peixoto de Azevedo, no ponto do confronto ocorrido no dia anterior (12/05/2017), onde a L-200 Triton teria sido abandonada, na MT-322.

Eles fizeram buscas em uma floresta que dá acesso a uma clareira, buscando passos e vestígios que apontassem para que lado os criminosos poderiam ter ido. Marcaram o que encontraram no GPS e, como já estava escurecendo, resolveram retornar para a viatura, que estava na estrada, para voltar no outro dia com o reforço da equipe que iria chegar.

Em seu primeiro depoimento, o cabo Jacinto disse que o tenente “deu ideia de ficarem na clareira aguardando a movimentação dos suspeitos, contudo a equipe sugeriu ao oficial que não seria conveniente permanecer na região, em razão da segurança, de a guarnição estar com a equipe reduzida”.

Eles se deslocavam da clareira em direção à rodovia quando, a cerca de 100 metros da viatura da PM, segundo o depoimento dos três anexado ao processo sobre a morte de Scheifer, teriam ouvido um barulho de mata sendo quebrada no lado oposto da rodovia MT-322.

Como é procedimento no Bope, todos se deitaram no chão e ficaram “congelados” em suas posições por cerca de 40 minutos. Na frente o sargento Lopes, depois o cabo Jacinto, o soldado Jovino e, por fim, o tenente e comandante da equipe Scheifer.

Em seu primeiro depoimento, sargento Lopes disse que depois da espera, ouviu Scheifer dizer “bora” e, em seguida, escutou um tiro que não soube dizer de onde vinha, já vendo o tenente vindo cambaleando em sua direção e gritando de dor.

Já o cabo Jacinto disse ter ouvido o comandante falar alguma coisa que não entendeu o que era e em seguida o disparo, também sem saber de onde vinha, vendo, na sequência, Scheifer cair em frente à equipe, fazendo barulhos como se estivesse afogando.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

O soldado Jovino, por sua vez, disse no primeiro depoimento ter ouvido um barulho de mato próximo à posição do tenente e acreditou ser mesmo o comandante. Por isso, ficou esperando se aproximar para confirmar, momento em que ouviu um tiro próximo à equipe do Bope, sem saber precisar de qual direção vinha.

Enquanto ainda tentava entender o que estava acontecendo e decidir se reagia, já em posição de ataque, Scheifer teria caído na frente da equipe, próximo ao soldado. Ele teria perguntado o que tinha acontecido, mas o tenente já não conseguia falar, só gemia e colocava as mãos na barriga.

Nenhum outro tiro foi disparado. O tenente foi arrastado até a viatura que os tinha levado até o local e foi levado para o hospital de Matupá, deitado no banco de trás com o soldado Jovino, enquanto o sargento Lopes dirigia a viatura e o cabo Jacinto estava no banco de passageiro. Não se sabe em que exato momento, mas Scheifer não resistiu ao tiro de fuzil AK-47 e morreu.

A notícia, o alarde e a grande operação

“Eu já estava com o coração na mão. Eu tenho no meu celular, 12:32 ele me mandou uma mensagem falando que estava bem. 15h30 eu comecei a ligar para ele e estava dando desligado. Aí eu mandei uma mensagem falando: ‘você não está trocando tiro aí não, né? Eu não acredito’. Meu coração já sentiu. Quando deu 18 horas e pouco a melhor amiga dele me ligou e eu já atendi falando: ‘o que aconteceu com meu marido?’ Aí ela falou: ‘calma, ele levou um tiro’. Eu falei: ‘ele morreu’. Ela falou: ‘não, a gente não sabe ainda, a gente acha que é na perna’. Eu tinha certeza que ele tinha morrido”, contou a esposa de Scheifer.

Alguns minutos depois, amigos do tenente, que haviam formado no CFO com ele, foram até a casa dela para dar a notícia oficialmente. Já bem mais tarde, a primeira pessoa do Bope a procurá-la foi o major Carlos Evane.

No dia 14 de maio de 2017, todos as mídias do Estado noticiaram que o tenente do Bope Carlos Henrique Scheifer havia morrido durante confronto com assaltantes de banco.

A história inventada para acobertar o que realmente aconteceu na mata fez com que uma grande operação fosse montada em busca dos supostos assassinos do tenente e mais de 140 policiais de oito comandos, aviões e helicópteros foram enviados para Peixoto de Azevedo para prender o que eles acreditavam serem mais quatro bandidos envolvidos com o novo cangaço.

O velório

Enquanto os colegas de farda buscavam o suposto assassino, Scheifer foi velado e enterrado em Cuiabá em uma cerimônia repleta de emoção. O corpo foi velado no Comando Geral da PM-MT no dia 14 de maio de 2017 e enterrado na manhã do dia 15 de maio.

O caixão foi recebido no cemitério por uma salva de tiros, disparados por policiais do Bope. O então governador, Pedro Taques, concedeu ao tenente a medalha Guardião do Paiaguás, entregue somente a quem vai à guerra. O helicóptero do Ciopaer sobrevoou o cemitério e derramou pétalas de rosas sobre o caixão. E todos os militares presentes prestavam continência enquanto a urna passava.

Cerca de mil pessoas se emocionaram na despedida do militar que era completamente apaixonado pelo que fazia. “Por todos os batalhões que ele passou, não tem um comandante, ou um praça, que não o ame. A prova disso foi o enterro que ele teve, a despedida que ele teve. Ele era absurdamente dedicado. Ele era tudo isso na polícia e na família”, disse a viúva de Scheifer.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Fim da operação, início da verdade

Foi somente no dia 26 de maio que a Polícia Militar anunciou no site oficial do Governo o fim da operação de buscas pelos supostos assassinos do tenente Scheifer. Durante esses 13 dias, porém, várias coisas já causavam estranhamentos nos militares em serviço.

“Quando alguém atira na equipe no mato, todo mundo atira de volta, é procedimento padronizado, porque no mato não tem velhinho na feira, transeunte, pode atirar, não vai pegar em ninguém, só vai pegar em quem está atirando em você. E nessa situação ninguém atirou, só houve um tiro. E é uma situação totalmente atípica. E ladrão de banco, ladrão de fuzil, nunca dá um tiro, eles atiram muito e jogam carregador na gente. Então quando a gente chegou lá e começou a colher essas informações, todo mundo que foi para dar apoio na ocorrência achou muito estranho isso”, disse um policial do Bope.

Consta no processo, ainda, que logo após a equipe médica indicar que Scheifer havia morrido, os três integrantes da equipe dele, acusados pelo crime, foram até uma sala do hospital e ficaram sozinhos. Um sargento da PM tentou entrar na sala e conversar com eles, “todavia pediram para que não entrasse no local, uma vez que estavam conversando”. O sargento também será uma das testemunhas ouvidas na próxima quarta-feira (03).

Outra coisa que chamou atenção das equipes de apoio é que um dos policiais vestiu o equipamento de Scheifer e percebeu que o tiro tinha sido de baixo para cima, entrando no abdômen.

“Ou seja, tinha que estar a uma distância muito curta para dar um tiro daquele. Tinha que estar a um metro e meio, dois metros, praticamente no pé. A gente começou a pensar: ‘poh, como que ele não viu?’ Mas beleza. ‘E se estava tão perto, por que o segundo e o terceiro cara atrás dele não mataram o vagabundo, em tese?’”, contou o policial sobre os questionamentos.

“Ai a gente perguntou pra equipe: ‘Beleza, onde foi o confronto?’ ‘Foi em tal lugar’. A gente foi procurar e não achou vestígios de ninguém”.

Segundo o policial do Bope, que participou dos 13 dias de operação, não havia galhos quebrados, nada caído, nenhum sinal de que pessoas teriam passado pelo local correndo após um possível confronto, como havia sido falado pelos três membros da equipe de Scheifer.

“Mas o que mais ficou estranho foi que quando a gente chegou lá, o comandante do batalhão [tenente coronel José Nildo] separou esses três caras que estavam com o Scheifer quando ele morreu. Eles não podiam ter contato com o resto de nós. Onde o comandante ia, eles iam atrás”, lembrou o militar.

“Sem brincadeira, devia ter uma média de uns 150 policiais trabalhando, tudo em cima da mentira que esses três contaram. Todo mundo acreditava que de fato a quadrilha estava lá, que tinha acontecido um confronto, que eles tinham matado o tenente, todo mundo foi para caçar os caras”.

As trocas de comando e o resultado da balística

No dia 04 de junho de 2017 foi realizada a troca do comando do Bope. O tenente-coronel Ronaldo Roque da Silva assumiu o batalhão no lugar do tenente-coronel José Nildo Silva de Oliveira.

No dia seguinte, o tenente-coronel José Nildo assumiu o Gefron, a tropa especializada em garantir a segurança nos mais de 900 km de fronteira seca e alagada que separam Mato Grosso e Bolívia, depois de oito anos no Bope, sendo dois e meio como comandante.

No dia 06 de julho de 2017, às 20 horas, a Polícia Militar divulgou uma nota no site oficial do Governo dizendo que o exame de balística constatou que o tiro que matou o tenente Carlos Scheifer tinha partido, na verdade, da arma de um dos membros de sua equipe.

A balística só foi possível porque Scheifer estava em posição de descanso, com seu fuzil atravessado no corpo, então o tiro atravessou seu fuzil, passou pelo colete a prova de balas, perdeu força nos dois impactos e parou dentro do corpo do tenente, na base da coluna. Se ele estivesse em posição de ataque, como chegaram a alegar os três membros da equipe, e o tiro não acertasse o fuzil, teria atravessado a vítima e saído. Além disso, em um fuzil, a maior velocidade não é quando ele sai do cano, mas já em determinada distância, e Jacinto, acusado de ser o autor do disparo, atirou muito próximo do tenente, diminuindo ainda mais a potência.

Somente depois do resultado, o cabo Lucélio Gomes Jacinto mudou seu depoimento, assumindo ser o autor do tiro, mas dizendo ter atirado por ter confundido Scheifer com um bandido, tese que ele defende até hoje.

“Perguntado ao investigado, quais foram as razões para não trazer essa versão apresentada neste presente ato, imediatamente ao 2° ten PM Scheifer ser alvejado, respondeu que no momento em que ficou sabendo que era o 2° ten PM Scheifer o indivíduo alvejado pelo seu disparo, ficou desesperado, não pensou em mais nada a não ser tentar tirar o citado Oficial PM da área de risco, para prestar socorro. E que após colocar o 2º ten PM Scheifer com apoio dos demais componentes da equipe na viatura PM, focou em prestar os primeiros-socorros, onde não mediu esforços para tentar reanimá-lo fazendo massagens cardíacas e realizando insuflações, daquele exato momento até chegar no hospital, onde uma equipe médica assumiu dali”, diz trecho do processo.

A partir da divulgação do laudo, as especulações começaram, visto que o sargento Lopes e o soldado Jovino seguiram dizendo não ter visto de onde veio o tiro, mesmo tendo acontecido ao lado deles, um barulho, citado até mesmo no processo, como ensurdecedor.

“Se foi um acidente, por que eles mentiram para acobertar? Se foi um acidente era só falar que deu merda. Mas a corrente que eu acredito, conhecendo as peças, o Jacinto, em virtude do Scheifer ter peitado ele, ainda mais na frente de outros policiais, ele se sentiu muito constrangido, porque nunca ninguém tinha feito isso com ele, dessa forma que tudo indica que o Scheifer tenha feito. Não no sentido de ser grosso, ou mal-educado, mas no sentido de falar ‘você fez merda, você vai comprometer a equipe inteira, bora para o quartel resolver’. O que eu acredito, é minha opinião e de vários outros, é que ele tenha matado de propósito sim, que tenha sido pensado, que ele encontrou essa oportunidade. E que os demais não falaram nada por medo. Eles resolveram mentir por medo”, disse o policial do Bope.

“Ele [Scheifer] era um cara que queria tudo muito perfeitinho. Então o Jacinto pode alegar tudo, que não vai colar, porque a gente sabe, a gente conhece como é o procedimento, como é o cara. Pode ter sido pela questão da voz de prisão mesmo, porque pelo que a gente conhece dele [Scheifer], ele faria isso mesmo, era uma atitude legal, mas falando da segurança dele, não era a atitude correta. De certa forma ele errou, porque quis ser muito legalista em um momento que não dava para ser legalista. Imagina: você acabou de matar um cara e um cara fala que vai te prender, o que você vai fazer? Você vai pensar em uma forma de resolver esse problema. E o Jacinto viu que a forma de resolver o problema seria com a morte do Scheifer”, afirmou outro militar.

A vida pós Scheifer

O sargento Lopes, o cabo Jacinto e o agora cabo Jovino só tiveram as prisões preventivas pedidas no dia 15 de março de 2019, quase dois anos após o crime. Eles chegaram a pedir a revogação no dia 21/03, mas a Justiça negou.

Em 2017, eles ainda chegaram a permanecer algum tempo no Bope, mas logo foram transferidos. Os militares que conversaram com o LIVRE relataram que Jovino e Lopes estavam muito abalados, a ponto de chorar.

Tássia, que até hoje faz tratamentos para conseguir viver sem o marido, disse que logo após a morte tentou muito encontrar com os três membros da equipe comandada por Scheifer, antes de saber o que realmente tinha acontecido.

“Eu pedia o tempo todo para o pessoal do Bope, porque eu queria saber coisas bestas, se ele comeu, o que ele almoçou, se ele estava feliz igual quando saiu daqui. Eu queria encontrá-los porque para mim eram as últimas três pessoas que estiveram com ele. Cara, é muito injusto, né? As últimas três pessoas serem isso. Mas eles nunca quiserem me encontrar. Aí dias depois veio esse resultado e a gente entendeu o porquê”, disse Tássia em meio a lágrimas.

Tássia guarda todas as coisas do marido e sabe contar a história de cada medalha e homenagem

Lucélio Gomes Jacinto se tornou motorista do subchefe do Estado Maior Geral da Polícia Militar de Mato Grosso, coronel Henrique Correia da Silva Santos, e em maio de 2018 recebeu um certificado de honra ao mérito. A homenagem, à época, foi bastante divulgada e criticada, depois que Tássia fez uma publicação em sua rede social.

Ao LIVRE ela contou que achava que teria paz quando os três acusados fossem presos, porém, não foi o que aconteceu, porque não mudou o fato de que ela continua sem saber o que realmente aconteceu.

“Eles podem ajoelhar, jurar pela mãe, que vai ser sempre uma mentira. Eles fizeram uma mentira da morte do meu marido. A prisão deles eu acho que demorou muito, mas eu sabia que uma hora tinha que acontecer, pelo cara que eu fui casada, pelo que ele me ensinou, ele me ensinou a acreditar demais na Justiça. O problema é que nada vai trazer meu marido de volta”.

Ela disse que faz questão de acompanhar todas as audiências e que hoje se sente até mais preparada para esse momento. Tássia segue morando na casa que dividia com Carlos Henrique, arrumando as coisas dele como sempre fazia e dormindo com as roupas dele. Hoje está cursando psicologia e espera, em breve, voltar a trabalhar, sonhando com o dia em que conseguirá ter uma noite de sono sem remédio – o que nunca aconteceu desde que perdeu o amor da sua vida.

“Se eu tivesse 10 vidas, eu imploraria para Deus para ter as 10 que eu tive. Ele é o amor da minha vida, parecia um príncipe encantado mesmo. Eu chegava na minha mãe e falava para ela que eu tinha medo, que não era possível alguém ser tão feliz assim, eu era absurdamente feliz. Descrever meu marido é impossível, eu sou a maior fã dele. Eu vivi tudo, eu sei de cada passo, a gente era mega parceiro. Ele é o amor da minha vida, ele era o cara mais brilhante que podia existir, ele era brilhante em tudo. Acho que esse foi meu problema também, acho que alguma coisa já me falava que eu ia perder ele cedo, porque eu vivia demais a vida dele”, lamentou a jovem viúva.

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