Em Poconé, no combate à COVID-19, nem o tereré escapou das medidas de restrição impostas pelas prefeitura local.
Atail Marques do Amaral, o Tatá Amaral, prefeito da pequena cidade mato-grossense, pra por o povo na txintxa[1], com o poder e o peso da caneta o prefeito não se fez de rogado diante das tradições destas terras e decretou: “ fica expressamente proibido o consumo de tereré ou similar, seja de forma individual ou compartilhada em locais públicos”. Mas nem sozinho, Tatá?
A medida, que está em vigor desde 28 de janeiro de 2021, causou verdadeiro rebuliço, como diz o cuiabano, não apenas por pitoresca e midiática, mas também porque traz à tona a proibição – por decreto – dessa tradição e cultura pantaneira.
O tereré é uma bebida típica sul-americana feita com a infusão da erva-mate em água fria, declarado, inclusive, pela UNESCO, como patrimônio imaterial da humanidade.
Muito consumida em lugares quentes, como Poconé, geralmente é comum ser apreciado em rodas de amigos e familiares e é aí que que mora o perigo, porque o compartilhamento da bomba pode favorecer a disseminação do novo coronavírus. Mas proibir o consumo individual, também, Tatá?
O ex- Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que é sul mato-grossense e conhecedor da tradição, no início da pandemia já havia recomendado que se evitasse o compartilhamento de bebidas como tereré e chimarrão. Inclusive não há ineditismo na proibição, outros municípios do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Rio Grande do Sul já haviam decretado a proibição de compartilhamento de tereré e similares.
Os decretos proibitivos editados pelos estados e municípios têm sido objeto de intenso debate na comunidade jurídica, que tem questionado à juridicidade e constitucionalidade destas medidas.
Pela conformação do Estado brasileiro, o Poder Legislativo está encarregado da elaboração das leis e, ao Executivo, especialmente, ao seu titular, compete privativamente o poder regulamentar, ou seja, é permitido apenas a edição de decretos voltados à fiel execução da lei, sendo vedado por esse meio a criação de direitos e obrigações. Afinal, assegura a Constituição brasileira que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
É certo que o prefeito de Poconé ao expedir o decreto impondo as medidas emergenciais e temporárias de prevenção ao contágio pelo novo coronavírus o fez em cumprimento aos decretos estaduais, mas, sem dúvida, extrapolou os limites do poder regulamentar.
A intenção é impor medidas sanitárias para evitar o contágio e disseminação da COVID-19 – que sabemos ser transmitida pela saliva -, por isso, o compartilhamento de bombas e utensílios utilizados na prática do tereré e similares pode ser um veículo de transmissão do vírus, mas não pode o chefe do Executivo local proibir e – por decreto – o consumo de tereré ou similar, seja de forma individual ou compartilhada em locais públicos.
É preciso cautela! Apesar de estarmos vivendo um momento crítico de calamidade pública, o enfrentamento da pandemia deve se dar dentro da legalidade e em absoluta compatibilidade com a Constituição. Decretos dessa natureza atingem o direito do cidadão e extrapolam o poder conferido à autoridade municipal.
O que se tem visto é uma enxurrada de decretos teratológicos que autorizam desde invasão a domicílios, proibição de beijos e abraços em lugar público, chegando a mexer no nosso tereré de cada dia.
O decreto de Poconé carece de técnica e qualidade legislativa, o que deve ser proibida, neste momento de pandemia, é qualquer aglomeração, que já foi decretada no próprio regulamento poconenano e compreende-se em agrupamento de número acima de 03 pessoas. Isso por si só já frustra qualquer possível roda de tereré, chimarrão e similares e essa medida está compreendida nos limites das prerrogativas do chefe do Executivo local. Muitos podem questionar, e quanto ao compartilhamento dos utensílios que é um potencial vetor de contaminação do vírus? Ora, se não há aglomeração, sequer haverá compartilhamento.
O que falta às autoridades brasileiras é difundir a importância das medidas sanitárias e de fato coibir a aglomeração e fiscalizar o distanciamento e o uso da máscara e punir quem insiste em descumprir essas regras.
Por fim, ao contrário do adverte o decreto, não é crime de desobediência o descumprimento da medida, afinal, não há lei que proíba o consumo da bebida, seja ele de forma individual ou coletiva.
Covid-19 mata e o Brasil está em 3º lugar em números de casos.
Proteja-se e, se puder, fique em casa.
Maria Luisa Nunes da Cunha
Advogada, OAB/DF 31.694.
Ex-advogada da CEB DISTRIBUIÇÃO S/A (Distribuidora de Energia Elétrica do Distrito Federal) e sócia fundadora do SANTOS PEREGO & NUNES DA CUNHA ADVOGADOS, sediado na capital federal (www.spnc.com.br)
[1] Expressão cuiabana que quer dizer sob controle in https://www.cuiaba.mt.gov.br/secretarias/cultura/dicionario-cuiabano/.