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Bar secreto em Cuiabá checa “credenciais” dos clientes e exige senha na entrada

A próxima edição do bar será na sexta-feira (13), com opções da culinária nordestina, argentina, chilena e venezuelana

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Bar secreto em Cuiabá checa “credenciais” dos clientes e exige senha na entrada
Cristiane e Sanches estão à frente do bar secreto (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre

Cerveja, comidinhas e assuntos políticos movimentam as mesas de um bar secreto em Cuiabá. Para ter acesso a ele, é preciso conseguir uma senha que só é liberada depois de checadas as “credenciais” do cliente em potencial.

É que há algumas restrições. Quem quiser uma entre as 50 vagas, não pode ser machista, homofóbico, transfóbico, misógino, racista, “de direita”, xenófobo, conservador, bolsonarista e até quem tenha se arrependido de votar em Jair Bolsonaro.

O sistema de funcionamento é inspirado pelos bares que surgiram na época da Lei Seca nos Estados Unidos. Entre os anos de 1920 e 1930 foi proibida a venda de álcool e para continuar servindo bebidas aos clientes, muitos bares foram surgindo secretamente em porões e fundos de restaurantes. Eles ficaram conhecidos como speakeasies. Você só saberia da localização se alguém te contasse e só poderia entrar, se tivesse a senha.

Foi esse sistema que atraiu os clientes que participaram da primeira edição – o bar funciona uma vez por mês -, como o estudante de pós-graduação, Juan Gabriel de Vital.

“Fiquei sabendo por um amigo. ‘É um bar de esquerda’, disse ele. E você só entra se tiver senha. Me agradou a ideia. Daí minha mente já me levou longe, eu ficava pensando que em uma pequena abertura numa porta alguém me diria: ‘qual a senha’?”, diverte-se.

Até chegar ao local, a ansiedade foi grande. Mas a acolhida na chegada dissipou o clima de tensão. “Foi bem divertido, enfim, me perguntaram qual era a senha”. Logo, já circulava por entre as mesas, conversando e apreciando uma cerveja. Como nos speakeasies, o volume do som era discreto, mas neste caso, a música realça a experiência.

Alguns minutos antes, enquanto os proprietários do espaço arrematavam os detalhes finais para receber a clientela, eles puderam contar com uma força dos amigos. Um deles, foi ligando o som… Sem ao menos checar o disco que estava ali dentro, colocou para rolar.

Ao ouvir os primeiros acordes, o professor universitário Djeison Benetti reconheceu a música e comentou: “começou bem”. Sem nada programado, a primeira música a ser tocada no bar era “Vai passar”, de Chico Buarque. Plena sintonia com o caráter do espaço, que existe [e vai resistir] como um manifesto.

E rapidamente os convidados começaram a ocupar as mesas da varanda da casa acolhedora onde funciona também uma charcutaria e uma cervejaria. Em uma delas, um grupo de amigos esperava pela servidora pública Catarina Oliveira. Ao chegar, se uniu à turma. “Eu convidei, mas eles estavam tão afoitos que vieram antes de mim. Estavam ansiosos para chegar até aqui e dizer a senha”, ri muito.

Bar politizado

Idealizadora do espaço ao lado do professor universitário aposentado, Carlos Roberto Sanches, a professora e doutora em História, Cristiana Vasconcelos comanda também a cozinha.

Ela estava vestida de Frida Khalo – pois o cardápio da primeira edição continha receitas mexicanas – e arrematava os pratos enquanto ao lado de Sanches, ia servindo também a pilsen da sua cervejaria, a Dialektisch.

O bar terá uma nova edição na sexta-feira (13), mas desta vez, as comidinhas servidas serão da culinária nordestina. “A culinária do povo que resiste”. Mas também haverá opções da culinária argentina, chilena e venezuelana, em alusão às insurreições e convulsão política na América Latina

E entre comes e bebes, haverá um momento dedicado ao debate. Porque o bar, é especialmente pensado para ser um espaço político, de alívio para quem sabe que está falando entre pares.

“A roda de conversa vai debater os acontecimentos políticos na América Latina e as suas consequências frente à democracia”, explica Cristiana.

Um bar sem conflito, para conversar com gente que pensa mais ou menos igual a você. Foi com esse intuito que o espaço foi idealizado. E ao que parece, a tônica é uma postura crítica em relação ao que consideram um governo que representa retrocesso. “Não dá para ver com naturalidade a ameaça de uma nova ditadura”, diz ela.

“Eu vivo hoje em um país onde ser gay, mulher, nordestino, de grupos pobres, negros, pode geral mal estar social. Muitos amigos meus já foram maltratados em alguns bares e é por isso também que criamos esse espaço, para que se sintam acolhidos”.

Vestida de Frida, Cristiana recebe o público. No menu da estreia, comida mexicana e cerveja artesanal (Ednilson Aguiar)

Cerveja e comidinha

Cristiane é “filha da classe trabalhadora”, como ressalta. E o aprendizado na cozinha começou logo aos 6 anos. “Mais tarde, cuidava dos afazeres domésticos para ajudar minha mãe que trabalhava e também fazia comida para minhas irmãs”.

Mas foi ao dividir espaço com um amigo que estudava cervejas artesanais para o doutorado que se aprofundou no assunto. Hoje, produz 12 tipos de cervejas, de estilos variados, como IPA, stout e pilsen.

Ao passar um tempo na Argentina para pesquisa de tema de mestrado, a historiadora também passou a produzir embutidos. Hoje, domina 105 receitas de linguiça, por exemplo. E destas, 67 tem algum toque de ingredientes regionais.

Fazem sucesso entre os clientes da charcutaria, a linguiça com abacaxi, carne seca com banana e pernil com canjinjijn. Ela produz ainda, presunto de parma, crudo, presunto, fiambre e defumados.

Relembrando bons tempos

Alguns dos primeiros clientes do bar estavam vivenciando o presente com um mix de nostalgia. E era justamente isso que os alegrava: o fato de reviver naquele dia, tempos bons que ficaram guardados na memória.

Sentado na calçada, de frente a um bosque, o professor universitário e militante do movimento negro, Waldir Bertúlio lembrou do bar que era mantido pelas musicistas Vera e Zuleika anos atrás. Ao seu lado, estava a companheira, a cantora Vera Capilé.

“Um monte de ‘gente de esquerda’ se reunia lá, falávamos sobre cultura, víamos shows. Hoje estamos vendo esse lugar nascer e saindo da mente de Cristiane e Sanches, é porque é bom mesmo. Espero que este seja um lugar para nos dar fôlego e forças para continuar lutando contra a perda de direitos. Sem contar que me traz um clima da Cuiabá de outrora, de sentar na calçada, bater um papo… sentir a generosidade das pessoas”.

Vinicius, de branco e Djeison, de azul

Outro que está bastante contente é o professor universitário Vinicius Machado. “É um espaço tranquilo, para conversar e tomar cerveja artesanal. Nada desses xaropes de milho transgênico que a gente toma por aí. Sem contar que me faz lembrar saudosista, do Bar do Léo, que a gente frequentava no Boa Esperança nos anos 1990. A gente ia e sabia que ia ter bons momentos, batia papo, falava sobre política, produção científica”.

Geraldo Diniz aprovou o novo espaço

Apreciador de cerveja especial e “romeiro” dos principais destinos onde são comercializadas bebidas artesanais em Belo Horizonte, o professor Geraldo Diniz também se empolgou com o papo, mas principalmente, com a Dialektisch.

“Fico feliz que Cuiabá ganhe mais essa opção”.

Eles foram prestigiar o amigo de longa data, o professor Sanches, que por anos presidiu a Adufmat e em outros momentos, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior.

Por mais de 40 anos ele foi professor na UFMT. “Ensinando matemática nas engenharias e também filosofia. Formamos um grupo com um espírito colaborativo e dialético”. Mas mesmo ao aposentar, ele continua germinando consciência política.

À ocasião da estreia do bar secreto da cervejaria Dialektisch, ele sentava-se à mesa, falava rapidinho e já voltava para o freezer, para pegar as cervejas e servir os presentes.

Na militância política muito antes de ser professor, vivenciou momentos importantes. Lutou contra a Ditadura Militar e vivenciou fases decisivas para a democracia brasileira, como o período da constituinte, presidindo a Adufmat pela primeira vez em 1987.

Assim como critica a transição democrática com Sarney e o surgimento de Collor, “um filho dessa transição oportunista”, como ressalta, tornou-se também um crítico do Partido dos Trabalhadores e da apropriação dos movimentos sindicais por partidos políticos.

Na atualidade, seu posicionamento crítico não mudou. Se ele teme críticas ou represálias por abrir um bar-manifesto? “Tenho o couro grosso. Não podemos aceitar a constituição de 1988 sendo retalhada e muitos dos direitos historicamente conquistados serem jogados no lixo”.

Depois da fala enérgica, ele diz: “me dê licença que vou ajudar ali”. Na edição da próxima sexta-feira (13) ele capitaneia a roda de conversa. Sim, e também serve a cerveja.

Como o bar é secreto, só tem funcionado no sistema de indicações. Mas se você quiser muito tentar uma vaga, entre em contato por e-mail: cristianadevascon@hotmail.com.

Sanches foi professor de várias gerações que passaram pela UFMT desde os anos de 1970 (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

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