Olá pessoal! Como sabem, estamos escrevendo a respeito do impacto da ciência brasileira há alguns meses. Em um desses artigos, comparamos o Brasil com a Arábia Saudita e o Qatar. Nele, demonstramos que esses países apresentaram um vertiginoso aumento da produção científica a cada ano nos últimos 15 anos. A Arábia Saudita passou de 2 mil publicações em 2002 para 21,6 mil em 2017 (mais artigos científicos que a Suíça), além de um grande aumento do impacto dessas publicações.

Em 2003, Arábia Saudita e Qatar apresentavam apenas 36,5% do impacto científico das publicações da Suíça (em citações por publicação, CPP), enquanto o Brasil tinha 47,9%. Em 2016-2017, ambos os países alcançaram (na média) 90,6% do impacto suíço, enquanto o Brasil ficou no mesmo patamar. O que fez a ciência dessas nações desérticas se valorizar tanto foi, em primeiro lugar, a excelente gestão dos recursos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Os recursos não eram fartos em termos de % do PIB, pois havia apenas 0,8% do PIB em P&D (no caso da Arábia) e apenas 0,5% (para o Qatar).

Outros fatores importantes foram a boa relação da ciência com as necessidades econômicas do país, em especial no caso do Qatar. Contamos, em detalhe, como a Ciência e Tecnologia (C&T) contribuíram para o enriquecimento daquele país com a exportação de gás natural liquefeito, e como foi fundamental o papel das universidades na produção de C&T de qualidade.

Diversos amigos e conhecidos cientistas (todos da área de ciências da vida) fizeram questionamentos sobre a pesquisa. Afirmaram que nunca ouviram falar de grandes pesquisadores do Qatar ou da Arábia Saudita. Isso significaria, na interpretação deles, que nossas análises de CPP e de impacto científico estariam erradas. E isso se estenderia para análises de CPP de outros países que fizemos. Será?

Vamos então investigar mais a fundo a ciência da Arábia Saudita para posteriormente tratarmos do Qatar. E já adiantaremos: nossos críticos, por serem todos da área de ciências da vida, estão equivocados.

As universidades sauditas

A Arábia tem 4 universidades que produziram, somadas, 14.438 trabalhos no quadriênio 2013-2016, conforme o Leiden ranking de 2018. Dessas publicações, 1.333 estiveram entre as “top 10” do mundo, perfazendo 9,2% do total de estudos. Esse valor não impressiona tanto se focarmos na King Addullah Univ Science & Technol (KAUST): 15,2% dos seus trabalhos estão entre os top-10, ou seja, 389 de 2.549 publicações da KAUST estão entre os artigos mais citados do mundo.

A quantidade total de publicações da KAUST é relativamente pequena: 462º lugar das 938 universidades listadas pelo Leiden ranking. Porém, está em 51º lugar em efetividade, medida pelo % de artigos da universidade na lista top-10 do mundo. Nesse aspecto, a universidade brasileira mais bem posicionada é a UFSC (710º lugar), seguida da USP (780º lugar).

A KAUST foca uma volumosa parte de produção acadêmica na grande área de engenharias e ciências físicas e químicas, que denominaremos “PHYS”. Dos 2.549 trabalhos dessa universidade, 1.597 são de PHYS, dos quais 259 são top-10. Os estudos top-10 representam 16,2% dos artigos de PHYS, o que confere à KAUST a 67ª posição no ranking mundial de efetividade na área (%-top-10 de PHYS), abaixo da Universidade de Liverpool (Boston College ficou em 1º com 27,4% de artigos top-10).

Na grande área de matemática e computação (“MAT”), das 379 publicações da KAUST, 55 estão entre os artigos top-10 do mundo, o que representa 14,4% dos estudos de MAT dessa universidade. Tal resultado rendeu à KAUST o 94º lugar no ranking mundial %-top-10 de MAT (New York Univ. ficou em 1º com 23% de artigos top-10).

A King Abdulaziz University também foca em PHYS e MAT. As duas áreas somadas representam 66% dos estudos da KAU. Mas o que realmente chama atenção é a quantidade de artigos top-10: entre as 937 publicações em MAT (13,6%), 127 são top-10, e, entre 1.890 artigos de PHYS (10,3%), 196 são top-10. A KAU está em 125º lugar no ranking de efetividade em MAT, no mundo. Essa posição parece baixa, mas a universidade brasileira mais bem colocada em MAT, a UFC, está em 363º lugar.

A King Fahd University of Petroleum and Minerals, a menor das 4 universidades sauditas citadas no Leiden ranking, concentra 63% dos estudos em PHYS, mantendo um impacto razoável. Dos 1.260 artigos de PHYS da KFUPM, 113 estão da lista top-10 (9,0% do total). A melhor universidade do Brasil na área em termos de efetividade, a UFSC, tem apenas 7,5% de artigos top-10 em PHYS (62 de 827 publicações).

Quantidade de artigos por grande área nas 3 mais importantes universidades sauditas. Azul representa PHYS; marrom: MAT; lilás: HUMAN; vermelho: HEALTH; laranja: LIFE-EARTH

Percebemos que as universidades sauditas não apresentam produção com grande efetividade científica (em artigos top-10) nas áreas de saúde e ciências biomédicas (“HEALTH”) e ciências da vida e da terra (“LIFE-EARTH”). Das 4 universidades, apenas a King Said University apresenta uma grande produção nessas áreas, com 2.984 artigos de um total de 5.600 publicações. Em contrapartida, são apenas 162 artigos top-10 nas duas grandes áreas.

Além disso, verificamos baixa produção quantitativa em humanidades e ciências sociais (“HUMAN”) nas universidades sauditas. Das 14,4 mil publicações das 4 universidades, apenas 293 (2,0%) foram em HUMAN das quais 23 artigos eram top-10.

Citações por publicação

Outra forma de avaliar as universidades é pelas citações por publicação (CPP). Os artigos de PHYS da KAUST (1.597 no total) receberam 19,9 mil citações e geraram um CPP de 12,50.  Esse resultado não deixa nada a desejar para a Universidade Harvard (CPPPHYS = 17,5), mas é um valor substancialmente mais elevado do que o da USP (CPPPHYS = 4,24) ou o da UFSC (CPPPHYS = 4,40) (Tabela 1). Na área de MAT, a KAUST apresentou 76% do impacto de Harvard (CPPMAT = 5,11). A KAU, por sua vez, apresentou 66%. Em ambas, o resultado é muito satisfatório. A USP teve apenas 38% do CPP de Harvard em MAT.

Ranking Scimago

Após analisar as universidades, é possível entender as excelentes posições da Arábia Saudita em diversas áreas do conhecimento com relação a outros países do mundo. O país destaca-se em 2º lugar do mundo no ranking CPP da Scimago em Engenharia Química, entre países com 1.000 publicações na área, em 2015 e 2016. Em 2016, 1.777 artigos receberam 24,4 mil citações, o que resultou em um CPP = 13,73. O 1º lugar de 2016 foi Singapura, com 1.539 publicações e 23,3 mil citações (CPP = 14,50). O Brasil (CPP = 6,51) ficou em 24º lugar nesse ranking-2016 com 29 países.

Em Ciências dos Materiais e em Engenharia (também entre países com pelo menos 1.000 artigos), o país destacou-se em 3º lugar, em 2015 e 2016. Em Matemática, ficou em 4ª posição em 2015 e 2016. Em Computação, ficou em 4º lugar em 2015, e 3º em 2016. Em Química, ficou em 5º lugar em 2015, mas caiu para a 7ª posição em 2016 (posição ainda muito relevante no ranking). Na área de Energia, a Arábia obteve o 2º lugar em 2015 e a 3º posição em 2016 (tivemos que fazer a linha de corte em 900 publicações).

No caso de 2017 (cujo ranking foi atualizado em 1º de junho de 2019), obteve o 1º lugar em Engenharia Química, Engenharia e Matemática. Ficou em 2º lugar em Computação, e 3º lugar em Ciências dos Materiais, Química e Energia.

Apesar do sucesso nas áreas de “PHYS” (1º a 3º lugar nos rankings de impacto em 2017; 2º a 7º lugar em 2015-2016), a Arábia Saudita não se posiciona bem em ciências da vida ou na área da saúde. Vejamos dois exemplos. Medicina: 25º lugar em CPP entre 48 países com pelo menos 2000 publicações em 2017. Em Bioquímica e Genética, a Arábia ficou em 15º lugar entre 34 países em 2016 (linha de corte em 2000 publicações).

Ranking Leiden 2019

Quando terminávamos de escrever este artigo, foi publicado o ranking Leiden de 2019 com dados do quadriênio 2014-2017. Pouquíssimos dados mudaram para as universidades sauditas, o que não justifica refazer as análises (a Tabela 2 indica as posições no ranking “% top-10” entre as universidades da Ásia). A grande novidade foi aparecer a Qatar University no ranking, com 1.038 publicações e excelente desempenho em MAT, com 12,5% de artigos top-10 na área.

Ao pesquisar o novo ranking, descobrimos que a KAUST (fundada oficialmente em 2009) evoluiu magnificamente nos últimos anos. Estava em 460º lugar no ranking (%-top 10) para o quadriênio 2007-2010, com apenas 7 artigos top-10 publicados. Evoluiu rapidamente, de modo que já se destaca em 49º lugar em 2014-2017, com 438 publicações top-10. Recomendamos conhecer o site da KAUST, belíssima universidade: https://www.kaust.edu.sa/en/

http://www.leidenranking.com/ranking/2018/list
http://www.leidenranking.com/ranking/2019/list

Não surpreende que nosso círculo de amigos cientistas não conheça a equipe de C&T da Arábia Saudita e do Qatar. As áreas impactantes desses países são em engenharia e química. Ao responder às críticas, demonstramos a validade do índice CPP para avaliar a efetividade científica dos países. O índice coincide com os resultados top-10 das universidades sauditas, indicando que PHYS e MAT são áreas de excepcional desenvolvimento científico na região.

Considerações finais

Não devemos confundir algo desconhecido à primeira vista (“não conheço grandes cientistas sauditas”) com aquilo que realmente é desconhecido, pois é natural rejeitarmos o que se encontra fora de nossa realidade, seja por desinteresse, seja por preconceito. A análise do que nos é desconhecido pode revelar valiosos caminhos para a superação de nossos problemas. A Arábia Saudita, por exemplo, apresenta uma realidade cultural e geográfica bem diferente do Brasil, mas um estudo criterioso desse país possibilita extrair importantes lições.

Como toda nação em desenvolvimento, a Arábia Saudita enfrenta uma série de problemas. Contudo, o país tem obtido um desenvolvimento surpreendente, tanto na economia quanto na ciência, além de sustentar um IDH superior ao do Brasil. Em apenas 15 anos, a produção científica da Arábia Saudita desenvolveu-se exponencialmente, pois, além de aumentar 10 vezes quantitativamente, sua produção foi acompanhada por um significativo impacto de relevância mundial, destacando-se por meio dos seus artigos top-10 e das citações (aferida pelo indicador CPP), conforme os rankings Leiden e Scimago.

Os sauditas destacaram-se em química, ciências físicas, matemática, ciência da computação e engenharias. Em contrapartida, a baixa biodiversidade do país, questões culturais, necessidade imediata para superar os problemas decorrentes da dependência do petróleo e da escassez de água doce talvez expliquem a menor produção do país em áreas como ciências da vida, humanas e biomédicas. De qualquer maneira, a Arábia Saudita apresenta um impacto superior ao do Brasil em todas as áreas analisadas.

Além de ser pouco comum um país aumentar a produção quantitativa de forma expressiva em paralelo com o impacto científico, a Arábia Saudita gasta apenas 0,8% do PIB em P&D (12,5 bilhões de dólares PPP em 2013), com 35,3 mil pesquisadores, de acordo com a Unesco**. Isso corrobora nossa hipótese — defendida em artigos anteriores — de que não é apenas o orçamento do governo em P&D que deve ser observado, mas a disposição dos incentivos nos lugares certos na sociedade. Além de estar à frente no índice de liberdade econômica comparada ao Brasil, a Arábia Saudita conta com importantes planejamentos estratégicos. 

Conforme destacamos em artigo publicado recentemente na Gazeta do Povo, o Saudi Vision 2030 reforça o novo contexto estratégico do país, cujo plano inclui — dentre outros aspectos socioeconômicos — a progressiva diminuição da dependência do petróleo e a superação do problema hídrico. Para tanto, a Arábia Saudita investe nas energias eólica e solar com o apoio da tecnologia chinesa. Como resultado, a usina de dessalinização saudita localizada em Ras Al-Khair se tornou a maior do mundo, superando inclusive a tecnologia israelense, uma vez que gera mais de um bilhão de litros de água por dia.

O processo de dessalinização demanda grande quantidade de energia no processo de aquecimento para adaptar a água para o consumo, cujo procedimento exige altíssima tecnologia. Esse contexto dinâmico da Arábia Saudita pode explicar, em grande medida, o proeminente impacto científico-tecnológico que o país apresentou na última década.

Mesmo diante de todas as evidências, os críticos negam a utilidade de consagradas métricas de avaliação da ciência quando estas apresentam um desempenho abaixo do esperado. Ao compararmos o Brasil com a Arábia ou com o Qatar, observamos que esses países apresentaram um desempenho bem superior ao nosso mediante investimentos menores (o percentual do PIB investido em P&D no Brasil foi de 1,27% em 2016).

A análise de CPP dos países não é apenas uma ferramenta acadêmica, mas pode ser um indicador essencial para a compreensão de problemas estruturais, considerando a realidade dos países por meio da C&T.

Finalmente, gostaríamos de agradecer ao Prof. Ricardo da Costa, historiador da UFES, pela paciente revisão do nosso texto.

**Para efeitos comparativos, o Brasil tem 317 mil pesquisadores (dados da Unesco de 2014), com investimentos de P&D de 39,9 bilhões de dólares PPP (2016). O custo do pesquisador é de 126 mil dólares PPP. Por outro lado, o custo do pesquisador saudita é de 354 mil dólares PPP.

Links:

https://www.belfercenter.org/publication/how-saudi-arabia-and-china-could-partner-solar-energy

https://vision2030.gov.sa/download/file/fid/417

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/10/151018_tecnologia_dessalinizacao_agua_rm

https://www.aquatechtrade.com/news/aquatech-news/worlds-largest-desalination-plants/

https://www.water-technology.net/projects/ras-al-khair-desalination-plant/

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