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Artista multifacetada, Anna Amelia é punk!

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Artista multifacetada, Anna Amelia é punk!
Anna Amelia Marimon

Artista multifacetada, Anna Amelia Marimon é plural. Ao lado de uma geração de artistas plásticos, se engajou no ateliê de Humberto Espíndola e fez a arte intrínseca ao seu ser. A pau-rodada chegou em Mato Grosso aos 15 anos e fez do couro, do cerrado e da sucata, suas principais ferramentas de trabalho e objetos de inspiração. Cosmopolita, conheceu uma Cuiabá efervescente e, performando ao som do rock’n’roll cuiabano, fez parte do movimento cultural libertário que marcou os anos 80 e resiste há gerações.

Uma mulher que trocou o salto pela botina rasgada e se rebela a seu modo. Contista, cria estórias com o cotidiano mais sutil e, atualmente, se aventura em um novo romance, ao qual dedica uma rotina caseira e reflete sobre o destino, que a ela se revela de forma sempre surpreendente.

Em mais uma entrevista da série de perfis do LIVRE, Anna Amelia conta como tudo começou por aqui, sua trajetória na vida e na arte e suas leituras de mundo.

(Foto: Maria Clara Cabral)

O LIVRE: Como a Anna Amelia veio parar em Mato Grosso?
ANNA AMELIA: Eu vim parar aqui carregada pela nova fronteira agrícola, que abriu os caminhos para os gaúchos adentrarem o Centro Oeste, em 1974, em pleno “milagre brasileiro”. Era uma “estratégia” militar, econômica, geopolítica de povoar o interior do brasil. Eles estavam abrindo a transamazônica e nessa leva de gente do Sul que veio para cá, nós viemos também. Tipo assim: “desbravando o cerrado”. Meu pai era advogado especializado em Direito Agrícola e aqui tinha muito trabalho para ele, porque a questão fundiária já era um mote forte na época. Viemos na leva de gaúchos que foram para a região entre Campo Grande e Coxim, que eram as novas lavouras de soja que estavam sendo abertas, e meu pai trabalhou muito tempo para essa gente. Em 1977, a família toda veio para Cuiabá e nós chegamos pau-rodados. Nós éramos todos jovens, eu era adolescente na época, cheguei em Cuiabá com 17 anos. Foi uma planta arrancada no vaso e plantada em outro lugar longe, foi essa a sensação.

OL: E Cuiabá?
AA: Em Cuiabá foi uma outra etapa, porque tinha uma pegada urbana, até bem cosmopolita, porque tinha muita gente de fora aqui, muito estrangeiro. Conheci gente de Toronto, conheci gente de Milão, Barcelona, Berlim, então eu conheci uma Cuiabá que era um caldeirão cultural, tinha muito informação chegando e eu estava sempre envolvida com essas pessoas. Minha mãe era tradutora também, e, por intermédio disso, eu conhecia muita gente de fora.

(Foto: Maria Clara Cabral)

OL: Você chegou aqui muito urbana. Incorporou algum tipo de relação com a natureza?
AA: Sim, bem mais urbana. Era uma cultura totalmente diferente, um ambiente totalmente diferente, porque nós vínhamos de Santa Maria, onde já tinha a Universidade Federal, era uma cidade ponta de lança em tecnologias, tinha inclusive um planetário. Foi um choque cultural, mas em troca eu recebi muita coisa, como o contato com a terra que eu desconhecia. Nossa natureza lá já era controlada, uma natureza de açudes, chácaras urbanizadas, um mundo completamente diferente daqui, onde o Mato Grosso era um mato só.

OL: E na arte?
AA: As minhas estéticas são urbanas, mesmo quando eu reproduzo uma paisagem, elas já são mais devastadas, pelo menos as últimas. Não tem mais a inserção do elemento humano como eu fazia muito na década de 80. Mas a pintura é uma coisa, o desenho é outra, a escultura é outra. A minha escultura tem um aspecto mais contemporâneo, porque trabalho com recicláveis, com sucatas, objetos que perderam sua função original e uma forma de serem resgatados é transformá-los em arte. Isso veio no final da década de 90, um caminho que tomei para explorar mais essa estética cosmopolita e menos voltada para o local, porque toda a minha trajetória com a pintura aqui em Cuiabá se deu através de uma temática local. A busca pela paisagem perdida, o cerrado, as águas, o céu. Isso tudo fez parte de um momento em que eu procurava me linkar com a cultura daqui, mas eu nunca consegui isso de forma efetiva. Não existe caju, nem manga, nem banana nos meus trabalhos.

Trabalho com sucatas reafirma estética cosmopolita da artista, que se dedica às esculturas a partir dos anos 90 (Foto: Maria Clara Cabral)

OL: A artista plástica então nasce antes da escritora ou a performer?
AA: Ela nasce junto, na verdade. É um nascimento simultâneo, porque na minha casa sempre existiu um ambiente para a arte florescer. Muita literatura, muito filme, muita leitura, minha vivência na infância foi debruçada em livros de arte, eu devorava, tinha uma curiosidade enorme e era uma apaixonada por Michelangelo, queria ser igual ele. Chegando em Cuiabá eu conheci a Aline Figueiredo e passei a frequentar o ateliê do Humberto Espíndola. Sempre fui artista, desde criança, mas ali eu tive o primeiro contato com esse universo das artes plásticas propriamente dito, uma coisa mais engajada, de pessoas comprometidas com todo o seu processo cultural. No decorrer desse aprendizado, eu ingressei na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), onde me formei em história. Peguei meu diploma 15 anos depois e só usei ele uma vez, em um emprego na Prefeitura, porque na verdade eu sou artista por natureza e não sei ser outra coisa. Eu tentei, juro que eu tentei, mas a vida me empurrou para a arte.

OL: Você foi revelada no Prêmio Salão Jovem Arte né?
AA: Foi, nossa, aquilo foi muito lindo. Eu era tão novinha, tinha 16 anos e ganhei um prêmio. Além de ter sido premiada, o meu pai negociou dois quadros meus e com esse dinheiro fez uma varanda no fundo da nossa casa, em Rio Verde, e falou: “vou ficar te devendo, tá minha filha?”. Eu fiquei tão feliz com aquilo, nem me importava com dinheiro, estava em uma fase bem hiponga, meus amigos eram os Espíndola de Campo Grande, precisava de pouco para ser feliz.

Cerrado “urbano” marca estética da artista plástica (Foto: Maria Clara Cabral)

OL: Houve um momento que você se percebeu uma artista?
AA: Isso veio acontecendo sempre. Toda vez que eu me aventurava em um trabalho mais burocrático, eu acabava esbarrando e colocando a artista naquele contexto. E, bom, nem sempre deu certo, mas a gente vai fazendo o que está ao nosso alcance. Trabalhei muitos anos como arte-educadora, foram 15 anos. Toda década de 90 e mais um pedaço dos anos 2000, com educação em saúde. Trabalhei com o Distrito Sanitário, onde nós tínhamos uma turma de agentes comunitários bem comprometidos. Com eles eu fiz um trabalho muito legal com teatro de fantoches para educar a população e levar para elas uma informação mais leve, mais fácil de digerir. Tive uma passagem também pelo Centro de Reabilitação Dom Aquino Correa que me valeu uma experiência riquíssima, aprendi muito ali. Então foi uma parte muito importante da minha vida essa como arte educadora.

OL: Arte dá dinheiro?
AA: Não, arte não dá dinheiro. Pelo menos no meu caso. Muitas vezes eu tive que me reinventar para poder sustentar essa arte. Ela nunca me sustentou, mas eu sempre dei um jeito, a gente sempre dá um jeito né? Eu tenho um outro trabalho que é o trabalho da minha vida. Eu trabalho com couro, com design de couro e isso é muito antigo, vem da minha juventude. Com 12 anos eu retalhei uns couros incríveis que meu pai tinha comprado para forrar o banco do carro. Ele era todo fino, todo metido. Ele viajou e quando eu vi aquelas peles lindas, peguei a tesoura e cortei, fiz bolsas e fui toda alegre mostrar para ele e ele me deu uma bronca, foi uma confusão. Eu fiquei toda chateada e quando ele viu que tinha ficado chateada ele veio a mim e falou “pode deixar que eu vou comprar outros couros, ficou muito bonita a sua bolsa”. Mas não estava bonita não (risos).

Camixir e Anna Amelia performer resistem gerações e no último mês, marcaram homenagem ao amigo Antônio Sodré com apresentação incendiante (Foto José Medeiros)

OL: E quando sua trajetória artística cruza com a trajetória do Caximir?
AA: Foi já na década de 80, quando o Caximir estava começando, foi por acaso, Numa dessas andanças pelo Boa Esperança nós fomos bater na casa de Toninho, que é um dos poetas mais respeitáveis do Caximir. Lá estava rolando um laboratório, uma experiência cênica muito legal, era um jogo em que as pessoas iam falando textos e eles iam se encadeando naturalmente. Aí eu entrei naquela roda, peguei gosto, fui ficando e tive uma participação de três ou quatro espetáculos nessa época, não foi muito tempo não. Esses guris eram muito loucos e eu não gostava muito da vibe deles, achava que eles eram muito cachaceiros e na época eu era toda certinha, almofadinha, meio coxinha (risos). Aí eles fizeram uma viagem pelo Sul, nessas eu estava me formando e fui morar em São Paulo, fiquei três anos lá. Passou-se um tempo, casei, tive duas filhas, voltei e reencontrei com o Eduardo, me casei com ele, tive mais duas filhas e numa certa altura do nosso caminho, em 1999, o Caximir ressurgiu espontaneamente. O acaso nos juntou, os velhos e os novos, e deu início a uma segunda fase, uma fase extremamente produtiva. Foi quando o Camixir virou uma banda, um bando. Abrimos um novo caminho de novas estéticas, eu acredito nisso. Muita gente bebeu daquela fonte, um momento bastante criativo e intenso, nós fizemos muitos shows naquela época. Foi de 1999 até 2008, quando o Caximir deu os últimos suspiros dessa segunda fase. Agora diz que estão querendo voltar de novo, vamos ver se terei energia para isso (risos).

OL: Você tem produções musicais também?
AA: Tem uma coisa assim que não pode se chamar de música, é uma anti música na verdade, porque são textos, as vezes são só fragmentos, bulas de embalagens. A primeira que eu fiz foi Danger Caution que é o verbete da embalagem de spray. “Cuidado, conteúdo sob pressão”, aquilo era muito rock’n’roll! Aí vinha aquela guitarra, aquele baixo atrás, bom demais. Aí virou música né.

(Foto: Maria Clara Cabral)

OL: Você é roqueira? O que escuta?
AA: Eu sou, minha alma é roqueira. Atualmente eu não gosto de escutar nada, virei uma chata (risos). Mas tudo que tu puder imaginar, eu ouvi. Do Black Sabbath ao Pink Floyd, The Clash, Ramones, Iron Maden, Phill Colins, eu não tinha problema com música não. Ultimamente só Mano Chao, tem umas outras coisas, mas eu esqueço o nome. Tem aquele cara que eu gosto, o Stromae. A Michele [amiga da família] quem me apresenta os melhores sons ultimamente, a Carolina [filha] de vez em quando também acerta.

OL: E como é viver em uma família de artistas e pessoas ligadas a arte? Vocês criam juntos?
AA: Ah, acontece. Rola uma sinergia muito forte de criação, mas cada um seguiu seu caminho e tem uma estética muito bem definida. Na verdade, elas se juntam, mas não se misturam totalmente, não existe uma mistura homogênea.

OL: Como foi sua trajetória enquanto mulher na arte?
AA: Sempre foi difícil. Ser loira era complicado, porque já era um adjetivo de mulher burra e esse preconceito sofri bastante. Como sou pequena, magra, eu era a “mulherzinha”. Só fui me posicionar melhor no momento do rock’n’roll, quando eu tirei o saltinho e vesti a botina, a calça rasgada, larguei de ser almofadinha e pensei assim “Ah, agora eu vou ser alternativa mesmo, já que não vou ser madame, eu vou ser punk!” (risos).

Escrevendo um novo romance, Anna Amelia se dedica ao seu cantinho de criação (Foto: Maria Clara Cabral)

OL: Se considera uma feminista?
AA: Não, porque inclusive tenho traços machistas terríveis na minha personalidade, é uma cultura herdada e arraigada, se eu for falar que sou feminista eu estou mentindo. Mas é claro que da minha forma, eu me rebelo. Não quero ser igual aos homens, jamais, e acho que ser feminista não é ser igual aos homens, é ser melhor que isso que está aí, esse modelo que nos empurram. É uma luta para as pessoas entenderem que isso está acabando, a mulher não vai mais ficar servindo mesa, a esposa que vai ficar fazendo café da manhã para o marido. Se despojar desse estigma da mulher servil, que aceita tudo, do lar. E que se não for do lar, ela vai ter que ser duas coisas, ter duas frentes de trabalho, ralar fora e quando chegar, dar conta de tudo. As mulheres são heroínas e deviam botar os homens para trabalhar duro para sustentá-las (risos).

OL: Queria que falasse um pouco sobre sua produção literária. O que te inspira?
AA: Tudo me inspira, qualquer fato cotidiano pode ser motivo de inspiração. Uma calçada rachada, um muro coberto de musgo, uma folha seca, um cachorro latindo no meio da tarde. Eu escrevo bastante, inclusive estou me aventurando agora a escrever um romance, o que é uma tarefa bem difícil. Como eu tenho um estilo de literatura que não é clássico, mas também não é moderno, é uma coisa que não sei definir, mas eu gosto da coisa linear, a história contada com começo, meio e fim, e que os fragmentos surjam só como memória dos personagens. Eu não me considero poeta, minha irmã é poeta, eu sempre ficava desenhando, enquanto ela recitava, e a gente tinha uma troca maravilhosa.

A artista é apegada a lembranças que guarda de sua trajetória (Foto: Maria Clara Cabral)

OL: E quais são suas leituras?
AA: Eu gosto de ler Isabel Alende, li muitos clássicos. Atualmente eu tenho lido muito best seller, tenho que confessar. Adolfo Bioy Casares, autor da guerra dos porcos, Ken Follet, Taylor Cadwell, John Hershey, que escreveu Hiroshima, um dos livros mais impressionantes que já tive oportunidade de ler. Minhas leituras da juventude foram todas as obras do Gabriel Garcia Marques, Herman Hesse, Aldous Huxley.

OL: E sobre seu novo romance, o que você nos adianta?
AA: É um romance que começa no Rio Grande do Sul, se inicia na década de 80 e faz todo esse traslado da personagem principal. Uma mulher que vem parar em Mato Grosso, trazida por uma série de desventuras que vão acontecendo e transformam completamente o universo original. Ela se vê levada pelo destino, como quando você se dá conta que o seu querer não é nada. Ele é muita coisa, mas não diante do fluxo da vida, porque acontecimentos virão independente da sua vontade, as coisas acontecem e você vai ter que lidar com elas, com essas situações nova. O título provisório é a “A Hora do Vento Selvagem”, não sei se assim vai ficar. Estou encerrando a primeira parte, terá três e essa personagem vai chegar até os seus 50 e poucos anos. Não sou eu, está? (risos).

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