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Afinal, o filme Coringa é esse mal todo que a crítica americana escandalizou?

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Afinal, o filme Coringa é esse mal todo que a crítica americana escandalizou?
(Foto: Reprodução/O Livre | Arte: Felipe Martins)

O medo diz muito sobre a própria natureza humana. O medo congela, te obriga a se esconder e, em último caso, te dá forças para correr. Entretanto, na era da comunicação em massa globalizada, o medo de certos temas incômodos também tem o potencial de ser “viralizado” ao redor do mundo.

Um dos exemplos mais recentes de uma histeria coletiva em massa e amedrontada está acontecendo agora, por conta da iminente estreia do filme Coringa, baseado no personagem alucinado arqui-inimigo do Batman.

De início, Coringa foi festejado. Sua estreia no Festival de Veneza foi aclamada e aplaudida durante oito minutos inteiros. A crítica italiana definiu a obra como uma “conquista cinematográfica”. A celebração foi tanta que o filme foi agraciado com a maior honraria do festival: o Leão de Ouro.

Entretanto, poucas semanas depois, a obra foi exibida para grande parcela da crítica americana no Festival de Toronto. Lá, o filme não encontrou a mesma popularidade e foi definido como “absolutamente perigoso”, por oferecer “empatia” ao personagem psicopata.

Stephanie Zacharek, crítica de cinema da revista Time, afirmou que o filme transforma “um cara triste que não consegue marcar um encontro em um herói assassino” – e que o personagem poderia ser eleito o “santo padroeiro dos incels”.

Para Richard Lawson, crítico de cinema da revista Vanity Fair, o filme pode ser uma “propaganda irresponsável”, que valida os tipos de comportamentos que supostamente deveria condenar.

Essas opiniões não ficaram restritas a esses dois críticos de cinema de veículos de grande porte nos EUA. As comparações da obra com membros da comunidade incel – celibatários involuntários em maioria misóginos com impulsos violentos – tornaram-se tão frequentes que até mesmo o grupo acabou por adotar o Coringa como mascote, sem nem mesmo terem assistido ao filme.

Logo depois, mais opiniões surgiram na mídia, afirmando que a obra poderia potencializar o risco de um ataque terrorista nos cinemas, do mesmo modo que aconteceu em 2012 na estreia americana de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge. O medo cresce, a mídia cobra e o governo age.

Em questão de dias, o exército americano foi orientado a estar de prontidão para qualquer risco de um ataque dos incels. Agentes do FBI treinaram funcionários dos cinemas para atuação imediata, caso o pior aconteça. Por fim, redes exibidoras agora determinaram que nenhum espectador porte máscaras ou armas de brinquedos nas sessões. Para alguns cinemas, nem mesmo as fantasias sobre o personagem serão permitidas.

Felizmente, apesar de alguns jornalistas desejarem o contrário, o filme será exibido em rede internacional e não será censurado. Querendo ou não, Coringa chegará aos cinemas em 3 de outubro.

A lógica do medo

Nesta semana, fomos convidados a assistir a polêmica obra e concluir por nós mesmos: afinal, há algum sentido nesse terror que a mídia americana especializada espalhou sobre uma obra de ficção inspirada em um personagem de quadrinhos?

A resposta curta é simples: não. Não há sentido. Coringa é um filme relativamente violento quando comparado a obras muito elogiadas como Deadpool e os filmes da franquia John Wick que, estranhamente, não causaram nenhum estardalhaço – apesar de os protagonistas serem anti-heróis que mutilam, explodem, esfaqueiam e atiram em seus algozes.

Embora chocante, o filme está muito distante de endeusar seu protagonista ou romantizar suas atitudes bizarras. A proposta da obra é mostrar como um homem já muito traumatizado, doente e predisposto à violência, chega a um ponto de não valorizar mais a própria vida – o que o motiva a se vingar das pessoas que fazem mal diretamente a ele.

Na história, é explícito que existem muitas zonas cinzentas para o personagem até ele finalmente ceder e aprender a gostar de matar. O que a crítica parece tanto temer é o colapso anárquico que ocorre em Gotham, quando o Coringa passa a agir violentamente. Porém, mais uma vez, a obra aponta que o personagem não planejou nada. Tudo o que acontece a seu redor iminentemente aconteceria mesmo se ele não fosse o catalisador involuntário do processo. O protagonista não tem ideologia, é totalmente apolítico.

Assim como muitos filmes hollywoodianos, Coringa antagoniza as classes sociais por divisão monetária. Gotham é uma cidade caótica, suja e decrépita, assim como era a Nova Iorque dos anos 1970 vista em Taxi Driver, de Martin Scorsese. Nela, há uma elite financeira, cultural e moral que quer dominar a todo custo a maioria dos cidadãos desempregados, sem perspectiva e completamente deixados à própria sorte.

Além de oferecer esse insight costumeiro do conflito de classes, Coringa coloca o dedo na ferida sobre a questão da saúde mental, até hoje vista com muito preconceito –apesar dos esforços de conscientização do Setembro Amarelo e afins. O protagonista Arthur Fleck é um homem solitário, bastante perturbado, açoitado diariamente pela sociedade ensimesmada de Gotham e, por fim, muito frustrado por não conseguir realizar seu sonho de se tornar comediante.

Apesar de todos os esforços do personagem em buscar ajuda terapêutica e psiquiátrica, de nada adianta, já que forças maiores agem sempre contra ele. A pressão é tanta que uma hora ele cede e abraça sua própria loucura. É particularmente curioso que o cineasta Todd Phillips mantém o personagem completamente preso em sua própria insignificância alienante.

Vida sem glamour

Os críticos americanos devem ter visto outro filme, pois Coringa nunca endeusa o personagem. Com Joaquin Phoenix completamente magro, doente, fraco, decadente, repulsivo e extremamente esquisito, é nítido que o cineasta sempre o aponta como um indesejado, um pária. Não há glamour na vida de Arthur Fleck. Somente miséria, ingratidão e alienação.

O cerne da obra se sustenta exatamente na questão da empatia. Não somente exibindo Arthur sendo punido incontáveis vezes sem misericórdia, mas por toda a população desamparada de Gotham que rapidamente se revolta contra sua própria condição miserável mirando o fogo nas elites da cidade.

A mensagem do filme é simples e clara: trate os outros com cortesia, com respeito e amor. Um mínimo de tratamento civilizado e realmente humano pode salvar muita gente de pensamentos ruins que motivam atitudes horrorosas. Inclusive, durante um segmento de Coringa, Fleck permite que um de seus colegas possa fugir de um assassinato porque ele foi a única pessoa que o tratou civilizadamente em um bom tempo.

Logo, quando justamente uma elite cultural se apavora tanto com a ideia do filme, isso diz muito mais coisa sobre os autores amedrontados, do que com o filme em si. Coringa não tem medo de tocar o dedo na ferida e isso certamente incomodou bastante gente que, querendo ou não, faz parte de uma elite que é retratada explicitamente no filme.

Não somente a financeira, mas a elite intelectual, dona dos conglomerados de mídia que condenam a violência, mas tiram todo o sustento justamente através da replicação incessante de crimes hediondos. Aposto que até mesmo você, caro leitor, já deve ter se cansado de ler notícias envolvendo o grande “perigo” que o filme representa.

Essa é a ironia mais clara de Coringa. O caos que ele proporciona à Gotham só ganha a força descomunal do clímax por causa, justamente, da mídia que explora e romantiza o primeiro delito que o protagonista realiza. Exatamente do mesmo modo que tantos jornalistas se comportam ao “profetizar” e explorar o medo de alguma tragédia envolvendo a exibição do filme.

Do que é responsabilidade de Todd Phillips, Joaquin Phoenix e da Warner, há apenas os elogios por terem realizado um filme que sai da mesmice apresentada anualmente em tantas salas de cinema. De resto, cabe ao espectador ter o bom senso de separar a realidade da ficção e aproveitar o filme.

Até então, isso já foi feito costumeiramente desde o lançamento de filmes polêmicos como Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick; Clube da Luta, de David Fincher; Kill Bill, de Quentin Tarantino; Irreversível, de Gaspar Noé; Réquiem para um Sonho, de Darren Aronofsky, entre tantas outras obras tão “perigosas” quanto.

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