O casamento foi realizado em uma sexta-feira, mas no dia seguinte, a noiva foi devolvida pelo marido, à família. Na segunda-feira pós-casório, o comerciante de Cuiabá, Pedro*, já entrou com ação, requerendo a anulação do matrimônio.
O motivo? Ele alegava ter sido enganado durante todo o período de noivado, pois a esposa – com quem havia namorado por dois anos –, não era virgem. Foram dois anos juntos, comprando enxoval para a futura casa em comum, até a chegada do tão sonhado casamento.
“Tremenda, entretanto, foi a sua decepção, quando ao realizar no seu leito conjugal o ato que constitui a função principal do matrimônio, chegou a dura realidade de que fora enganado, encontrando sua esposa desvirginada”, alegou o advogado na peça inicial.
A noiva, teria ocultado “a sua prometida tão grave falta – a mácula de sua desonra”.
Na mesma segunda-feira, o juiz responsável pelo caso mandou que ela fosse citada para que pudesse se defender. Se já não bastasse ter sido devolvida à família em situação vexatória, ela teve ainda que realizar uma avaliação médica, a pedido do marido, como medida preventiva.
Essa história, que deu o que falar no ano de 1941, em Cuiabá, consta no Arquivo do Fórum de Cuiabá, e veio à tona com o projeto Memória Judiciária, desenvolvido pela Coordenadoria de Comunicação do Poder Judiciário de Mato Grosso. Ele integra uma série especial titulada 145 anos: o Judiciário é História, em comemoração ao aniversário do Tribuna de Justiça que começou a atuar no dia 1º de maio de 1874.
Florinda* foi vítima de uma sociedade machista e opressora.
Investigando…
Pedro pediu que ela fosse submetida ao exame, para que três de seus questionamentos fossem solucionados:
1) estando a suplicada desvirginada, é antigo ou recente esse desvirginamento?
2) há quanto tempo?
3) Tendo o casamento se realizado no dia 27 de junho de 1941, em cuja noite teve o suplicante relações sexuais com a suplicada, é possível que o defloramento se tenha dado em praso (sic) tão recente, isto é, no referido dia 27?.
Foi então que dois peritos foram nomeados para realizar o exame: os médicos Agrícola Paes de Barros e Antonio de Pinho Maciel Epaminondas, assim como um assistente técnico indicado por Pedro.
Ao contrário do que pensava o marido, eles responderam que o ‘desvirginamento’ seria recente, com menos de oito dias, e que seria possível que Florinda tivesse tido sua primeira relação sexual exatamente no dia do casamento.
Noiva se defende
Ao contestar a ação judicial, a defesa de Florinda destacou os predicados da mulher e questionou a boa fé do noivo.
“Moça modesta, de vida recatada e de conduta irrepreensível, qual não foi o seu abalo moral ao ver, quando de sangue tinto ainda o lençol do leito conjugal, selo do seu desvirginamento, conduzida, como se rameira fosse, à casa materna e entregue à família, como uma despudorada. De quanto é capaz a miséria humana! (…)
O autor conhecia a verdade: ser a contestante virgem.
O seu modo de vida irrepreensível e o próprio ato sexual com resistência e derramamento de sangue não deixaram dúvida. Acrescente-se a isso o exame pericial presidido por V. Excia, com assistência do Dr. Promotor de Justiça e levado a efeito pelos médicos legistas oficiais, do conhecimento imediato do autor”, ressaltou o advogado de Florinda.
No total, ela teve que se submeter a dois exames, com peritos distintos, que comprovaram sua recente perda de virgindade.
O primeiro exame médico legal feito na paciente, no dia seguinte ao casamento, também constatou “defloramento recentíssimo (menos de 24 horas)”.
Lençol e roupa manchados de sangue
Além de realizar os exames, Florinda ainda apresentou o lençol e uma roupa utilizados na noite de núpcias, manchados de sangue, para supostamente comprovar que até então ela não tinha tido relações sexuais.
“Que o próprio lençol do leito nupcial de hontem e que será apresentado a esse juízo, tinto de sangue do imen (sic), é prova irrefragável da grande infâmia que lhe atira o seu noivo de hontem hoje marido”, narra trecho do processo.
Em 11 de agosto do mesmo ano, menos de dois meses após a ação ter sido ajuizada, Pedro reconheceu o erro. Ele pediu a seus advogados que entrassem com uma petição desistindo da ação ordinária de anulação de casamento anteriormente proposta.
O advogado explicou que Pedro teria se reconciliado com a esposa, “por ter verificado a improcedência da referida ação, cujo laudo pericial junto aos respectivos autos bem demonstra o equívoco do suplicante”.
Resultado? Vivendo à época numa sociedade conservadora e machista, Florinda preferiu manter o casamento a viver como mulher divorciada. Mesmo tendo passado por situação extremamente vexatória e ter sua intimidade exposta.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das partes.
*Com assessoria