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A virtude da conformidade

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A virtude da conformidade
(Foto: Marcos Corrêa/PR)

Nosso presente político está tumultuado, o nosso novo “normal” são discórdias, fofocas midiáticas anunciando catástrofes no governo, acusações e farpas de um lado para outro no espaço público – e não só entre inimigos políticos, mas entre supostos parceiros de partido, de cátedra, de parlamento. Cada um tem a solução: a eliminação do outro – e chama para si a autoridade suprema do bem.

O povo comum, gente como eu e você, só quer que o país dê certo. Tudo o que queremos é que o país saia de uma vez por todas de dentro do poço sem fundo em que os interesses corruptos da minoria que se achava dona do país nos enfiou.Mas essa tarefa de sair de dentro do buraco requer um mínimo de cooperação entre os membros do corpo que se encontra lá dentro. A perna, o braço, a cabeça, todos têm que decidir subir juntos. Explorando um pouco mais a metáfora, somos um corpo cujos membros estão em guerra um com o outro impedindo o todo de mover-se.

Disse o cientista Carl Sagan que, para entender o presente, temos que conhecer o passado. E nosso passado nos mostra que esta incapacidade de criar um consenso em torno das coisas mais simples, o medo da parceria, a inabilidade da conformação institucional, a absoluta falta de coesão social, e a percepção de uma virtude heroica na autocracia compõem o nosso bom e velho modus-operandi-brasilis. É um sentir social tosco, que nos conduz à auto-sabotagem contínua, a verdadeira “política do porco-espinho”. Ele está conosco desde sempre, veio importado da Ibéria e se instalou aqui, deformando-nos com a sua concepção maligna disfarçada de nobreza.

Sérgio Buarque de Holanda descreve magistralmente esse espírito tupiniquim. Os ibéricos, diz ele[1], principalmente os portugueses, deram um salto na modernidade antes que ela existisse. Rejeitaram a cosmovisão medieval que organiza o mundo em hierarquias transcendentes. O português era o homem do destino próprio. As classes de nobreza eram abertas, as tradições não o prendiam e não o definiam.

Parece uma proposta interessante até, mas quando este ser independente se encontra em sociedade a coisa se complica.  A aspiração portuguesa era a de não ter de se submeter a nada e nem a ninguém. Como uma sociedade assim se organiza? Cita Sérgio em “A farsa dos Almocreves:[2]

Cedo não há de haver vilão[3]
Todos d’el Rei, todos d’el Rei!

Todos queriam ser o rei. Eram os reis de si mesmos e de seus pequenos reinos. Até hoje este ideal se perpetua. Todos queremos que o mundo se conforme a nós. Se me é dada uma tarefa, quero realizá-la do meu jeito. Se pertenço a um grupo minha individualidade ainda é prioridade, porque o grupo não sou eu.

O tupiniquim-brasilis é um solitário por não saber reconhecer uma virtude essencial para a vida em sociedade: a boa e velha “conformidade.” Você já esteve em alguma palestra ou pregação religiosa em que se exalta a conformidade? Eu não. Mas foi morando na América, e aprendendo um inglês melhor do que o português traduzido que falava antes, que  percebi que a palavra compliance apontava para uma virtude.

Eu me surpreendi. Como assim? Conformidade, aceitação pronta, submissão, sempre estiveram na minha lista de “sentimentos a serem evitados.” Era o meu not-to-do. “Nunca abaixe a cabeça minha filha…”Eu não sabia separar a disposição cooperativa da submissão às regras, do conceito nefasto da subserviência. Acontece que ser compliant não é o mesmo que ser subserviente, não requer a auto-anulação, requer apenas inteligência e a constatação de que ninguém é uma ilha. Por mais brilhantes e capazes que sejamos, não vamos “fazer verão” sozinhos.

O autor americano Malcom Gladwell derruba o clichê do herói-lobo-solitário[4], o homem que venceu sozinho, examinando casos de sucesso, dos Beatles a Bill Gates. Ele demonstra que cada pessoa que se destacou em num campo ou em outro contou com a confluência de vários fatores históricos e sociais e que o maior deles foi a cooperação de outros. Gladwell diz: “Ninguém, nem as estrelas do rock, nem os atletas profissionais, nem os bilionários do IT, nem os gênios, conseguem ter sucesso sozinhos”.

Eu pensava que países como os Estados Unidos, que têm a inciativa individual como núcleo principal, eram países que valorizavam o individualismo… Mas eu pensava errado. A América cultiva como virtude a atitude de submissão e de cooperação mútua. Não dá pra fazer parte de uma equipe de trabalho aqui se você não sabe seguir regras, não sabe se adequar ao grupo, se não quer trabalhar para que o todo funcione e até que outros, além de você, brilhem.

A palavra maverick que designa o lobo-solitário, tem uma conotação pejorativa. Valor individual – a espinha dorsal da cosmovisão americana – não é o mesmo que individualismo. Na verdade, é exatamente o contrário. Onde o indivíduo sabe seu valor e seus direitos, e é respeitado e cobrado em sua agência, é também motivado a cooperar e a pertencer ao grupo.

O homem brasílico infelizmente quer reinar só. Mas esta arrogância só vai conduzi-lo ao fracasso. No sentido social, o Brasil é um milagre. É um milagre não termos nos explodido ainda em 200 milhões de micro-pedaços, 200 milhões de nações em uma só. Sérgio Buarque nos descreve com palavras que ainda hoje nos cabem como uma luva: “Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente com a indolência displicente das instituições e costumes… (33)”. Não trabalho com ninguém, não quero rei sobre mim, é o mote de muitos políticos hoje.

Vamos seguir assim aleijados, com três Poderes independentes, mas não só no sentido de autonomia, mas independentes de natureza isolacionista e totalitária. Buscam cada um o poder absoluto sobre um país que pensam ser só deles. Não servem à nação, ao povo, servem-se a si mesmos. Mas fica pior. Novamente empresto do Sérgio para expandir a ideia. Ele já nos havia ensinado que nossa sandice vai ainda além.

As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de os unir. Os decretos dos governos nasceram em primeiro lugar na necessidade de se conterem e de se refrearem as paixões particulares momentâneas, só raras vezes da pretensão de se associarem permanentemente as forças ativas…(33)

Em outras palavras: o animal brasilis só sabe ser governo (Congresso, STF ou Executivo) para destruir e restringir. Na capacidade de dizer “não” e fechar portas repousa o suprassumo da autoridade política. E assim segue o enterro.

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[1] de Holanda, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil: edição crítica. Companhia das Letras, 2016, pg 33-36

[2] Peça de Gil Vicente, representada nas ruas de Coimbra em 1527

[3] O que habita na vila

[4] Gladwell, M., 2008. Fora de série: Outliers. Rio de Janeiro: Sextante, p.43.

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