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A vida é um direito ou um dever? Especialista fala sobre suicídio assistido

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A vida é um direito ou um dever? Especialista fala sobre suicídio assistido
Luciana Dadalto

Luciana Dadalto é doutora em Ciências da Saúde pela faculdade de Medicina da UFMG e mestre em Direito Privado pela PUCMinas. Ela é fundadora de um site sobre testamento vital no Brasil.

A vida é um direito ou um dever? Eis a questão que está por trás das discussões sobre eutanásia e suicídio assistido. Pelo menos é assim que resume a advogada Luciana Dadalto, especialista no tema e responsável pela criação e manutenção do site Testamento Vital, que trata do assunto. A dicussão sobre a legalização da eutanásia e do suicídio assistido veio à tona depois que o LIVRE noticiou a decisão da médica Letícia Franco, que anunciou viagem até a Suíça para ser submetida a suicídio assistido, procedimento legalizado naquele país.

Dadalto concedeu entrevista a esta reportagem onde explica que “testamento vital” é um documento que dá a pacientes em estado terminal o direito de decidir como querem ser tratados. No Brasil, o testamento nao pode prever a interrupção da vida, mas é algo que já está previamente regularizado e pode alavancar ainda mais as discussões sobre o tema no país. 

O LIVRE – De onde surgiu a ideia de criar um site sobre testamento vital?

Luciana Dadalto – O testamento vital é um documento que surgiu nos Estados Unidos da Amércia na década de 1970. É um documento de manifestação de vontade em que uma pessoa vai dizer como ela gostaria de ser cuidada e tratada pela equipe de saúde quando estiver com uma doença grave e terminal. Eu pesquiso sobre o assunto desde 2008. Comecei a estudar o tema e em 2009 iniciei o mestrado. Em 2012 entrei no doutorado na faculdade de medicina da UFMG e continuei estudando. O site eu criei em 2012 ou 2013. E durante este tempo eu sempre penso “eu só sei que nada sei”, quanto mais eu estudo mais coisas aparecem, mais dúvidas, mais possibilidades. É um assunto extremamente complexo principalmente em uma sociedade como a nossa que tem muita dificuldade em falar sobre a morte e que leva essas questões para o lado moralista e religioso.

O LIVRE – Por que surgiu a necessidade deste documento naquela época?

Luciana Dadalto – O testamento vital é produto da constante tecnicização da medicina. A medida com que as formas de prolongamento artificial da vida foram sendo inventadas começou-se a discutir se todos os pacientes são obrigados a aceitar este prolongamento. E aí a gente entra em uma discussão sobre o que é vida. O que significa estar vivo? É estar em uma cama ligado à aparelhos sem poder fazer nada? E é muito curioso notarmos que estamos falando de uma discussão que começou 40 anos atrás e no Brasil a gente ainda está engatinhando no assunto. O prolongamento artificial da vida, que a gente chama tecnicamente de distanásia, ainda é a realidade no nosso país.

“Nós discutimos se a vida é um direito ou um dever. Porque se a vida é um direito você poderia dizer que não quer estar vivo com uma doença terminal. Mas se a vida é um dever eu não posso pedir isso, porque há o dever de permanecer vivo”

 

O LIVRE – O testamento vital tornou-se um contraponto a esta ideia de prolongamento?

Luciana Dadalto – Historicamente o testamento vital está associado a recusa de tratamento. Mas é um documento de manifestação de vontade, que pode ser positivo ou negativo, mas como o mais comum é que a equipe de saúde prolongue consequentemente o paciente costuma pedir para que não seja feito este prolongamento. É importante deixar claro que um pedido de eutanásia ou suicídio assistido no testamento vital só existe em países como a Bélgica, a Holanda e a Suíça, onde há legalização. Isso no Brasil é proibido. Não se trata, portanto, de um documento feito somente para eutanásia ou suicídio assistido. É um documento cujo conteúdo vai se amoldar de acordo com a lei vigente em cada país.

O LIVRE – O que existe de legislação sobre o testamento vital no Brasil?

Luciana Dadalto – Existe uma resolução do Conselho Federal de Medicina de 2012. Mas nós não temos nenhuma perspectiva de aprovação de uma lei federal, não há nada tramitando. Ainda existe muito desconhecimento, tanto da sociedade quanto de quem trabalha no Direito. Os próprios profissionais de Saúde desconhecem, eles acham que o paciente não tem direito a este tipo de testamento. E a discussão de eutanásia e suicídio assistido são quase inexistentes. Quando esta discussão aparece é mais em uma perspectiva moral e religiosa do que em uma perspectiva de direito.

O LIVRE – E qual seria a diferença entre as duas perspectivas?

Luciana Dadalto – A questão moral e religiosa tem a ver com o certo e o errado. Numa perspectiva religiosa a vida pertence a um deus de determinada religião. E neste aspecto a pessoa não poderia – mesmo com uma doença incurável – dizer que não deseja permanecer viva biologicamente. Uma pessoa que não quer permanecer viva é taxada de doida, alguém que possui alguma doença psíquica. Mas no aspecto jurídico esta é uma discussão de direito. Uma pessoa que já tem um diagnóstico de doença terminal tem o direito de querer morrer? Nós discutimos se a vida é um direito ou um dever. Porque se a vida é um direito você poderia dizer que não quer estar vivo com uma doença terminal cujo tratamento te aflige. Mas se a vida é um dever eu não posso pedir isso, porque eu tenho o dever de permanecer vivo. Este é o dilema que existe do ponto de vista jurídico.

“Em um país como o nosso seria muito complicado a legalização da eutanásia ou do suicídio assistido. O paciente pode pedir um procedimento de interrupção da vida simplesmente porque não está recebendo tratamento adequado”

O LIVRE – Porque alguns países na Europa aprovaram o suicídio assistido, mas a eutanásia não?

Luciana Dadalto – É uma questão legal, foi uma opção do legislador. Muito ligado a ideia da autonomia. De dizer “olha, se você quer tirar a sua vida tudo bem, o ordenamento jurídico vai permitir, mas neste caso é você que vai fazer”. Existem autores que dizem que isso é uma hipocrisia, que não faz o menor sentido diferenciar eutanásia de suicídio assistido do ponto de vista legal, já que nos dois eu tenho um terceiro ajudando. Mas é uma discussão filosófica e social e é complicado dizermos se é certo ou errado. Eu acho que o pior é o que a gente vive no Brasil hoje, em que nem esta escolha existe.

O LIVRE – O nosso país está preparado para enfrentar uma discussão sobre o assunto?

Luciana Dadalto – Eu não acho que temos maturidade social para falar sobre isso. Eu acho que é necessária uma discussão social prévia e bem ampla. Nós vivemos em um país em que as pessoas ainda não têm acesso a medicamentos. O uso de opioide no Brasil ainda é muito baixo. E o opioide é importante para que o paciente em fim de vida tenha sua dor controlada. Em um país como o nosso seria muito complicado uma legalização da eutanásia ou do suicídio assistido. O paciente pode pedir um procedimento de interrupção da vida simplesmente porque não está recebendo tratamento. Esta é, inclusive, uma discussão que Portugal está enfrentando agora. E a briga deles é que não dá para falar em eutanásia em um país em que as pessoas continuam morrendo de dor.

O LIVRE – A aprovação de uma lei sobre testamento vital vai permitir que a gente discuta sobre suicídio assistido e eutanásia?

Luciana Dadalto – Não. Não é uma ligação lógica. Mas a aprovação de uma lei sobre testamento vital vai ajudar nossa sociedade a quebrar este tabu de falar sobre morte. A gente tem dificuldade com a doença incurável, com a finitude e com tudo aquilo que não conseguimos controlar. A aprovação desta lei possibilitaria um passo de diálogo maior sobre a finitude.

O LIVRE – Muitas pessoas dizem que é um desperdício optar pela eutanásia ou pelo suicídio assistido quando há tratamento… Você concorda com este raciocínio?

Luciana Dadalto – Existe uma dificuldade por parte das pessoas de entender a autonomia do outro. De entender que as pessoas fazem escolhas diferentes. Um paciente vai aceitar o tratamento, mas o outro pode não querer. Todas as vezes que a gente tem uma discussão sobre autonomia (como no aborto e na pena de morte) surgem estes questionamentos.

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