Moro há alguns anos nos EUA, um país em que a vida coletiva é mais simples do que no Brasil. Quando digo vida coletiva não me refiro à vida com minha família e amigos, mas ao espaço público, filas, ruas, restaurantes, lojas, repartições públicas, enfim, os lugares onde tenho que roçar ombros com desconhecidos.

Este espaço é mais leve por aqui, mais fácil de se navegar. Estranho que uma cultura conhecidamente individualista como a americana valorize mais o que é público enquanto que uma cultura orientada para o grupo como a brasileira o espaço coletivo não tem peso ou importância.

Como uma sociedade demonstra valorizar o que é público? Acredito que seja preservando valores e  tradições que legitimam as regras que são obedecidas por todos. Para que o jogo social público funcione, as regras tem que ser definidas e claras, e universais, ou seja aplicadas a todos sem exceção.

Na América o espaço público é primariamente igualitário. Se eu moro em NYC e saio com meu cachorro para passear, eu tenho que recolher o que ele descomer em um saquinho e jogar na lixeira. Se a Madonna sair às ruas com seu totó, ela também tem que recolher os dejetos do mesmo jeito. Na calçada, que é de todos, não há diferença entre as minhas responsabilidades e as da Madonna.

Outro espaço público é o trânsito. Se estou dirigindo e vejo um sinal vermelho, tenho que parar. Se a Taylor Swift vê o sinal vermelho também tem que parar.

No espaço público minha individualidade se despersonaliza. Ali, eu não sou eu com minhas características pessoais, esta ou aquela posição social. Me torno um elemento na multidão sujeito às regras que estão ali para todos.

A minha obediência às normas coletivas torna a vida mais fácil para os outros. Porque eu e os outros obedecemos, o espaço público se torna mais adequado ao uso de todos. Se as regras não são claras, ou não aplicadas a todos, se convive sempre com o tumulto, e o abuso.

Se eu ou outros reivindicarmos a liberdade de individualizar o uso do espaço coletivo, ele acaba se tornando o inferno de todos. Eu não sinto necessidade de reconhecer o seu direito, você não reconhece o meu, e assim destruímos o jogo social que tornaria a vida mais fácil para você e para mim.

Mas o que leva uma sociedade a construir a ideia do respeito ao espaço público? De onde deriva o principio igualitário que faz o espaço público americano funcionar bem?  Como outras áreas, o conceito do espaço público também funciona de acordo com a sua teologia, as pressuposições fundamentais que formam os conceitos mais profundos que temos à respeito de Deus e de nós mesmos.

A teologia cristã  começa por estabelecer o valor pessoal do indivíduo e também impondo limites. Se cada pessoa tem como uma axioma seu valor intrínseco como criatura de Deus, e não vê seu valor individual como um subproduto de sua posição no estrato socio-economico, a igualdade tem substância.  O respeito ao outro é uma consequência desta noção.

O garçom que limpa a mesa do restaurante tem o mesmo valor que senta nela para pedir o jantar. O advogado chama o garçom de “Sir” e vice-versa. São duas pessoas conscientes de seu valor pessoal se encontrando no espaço público.

Porque o outro tem valor, minha liberdade é limitada. No espaço público o meu conforto não é mais importante que o seu. Não tenho o direito de agredir aquele que me serve, porque não me senti atendido. Porque eu tenho valor intrínseco eu não preciso me impor aos outros, não tenho prerrogativas acima de todos, não presumo o meu julgamento superior às regras pré-estabelecidas.

Aprendi por aqui que teologia faz mais do que guiar os hinos que canto, ou o que eu penso desta ou daquela doutrina bíblica. A teologia também tem um poder transformativo sobre a nossa organização social. Estou esperando para viver o dia em que a fé crista professada por mais e mais brasileiros vai ser vista também em nosso espaço público.

(Publicado anteriormente na revista Ultimato, 2019)

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