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A Síndrome de Down e o valor humano

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A Síndrome de Down e o valor humano
(Foto: Arquivo/Agência Brasil)

Não nascem mais bebês com Síndrome de Down na Islândia.  Há cinco anos a síndrome está erradicada do país. O anúncio é dado ao mundo pelos habitantes da ilha com orgulho. Mas falar em erradicação de uma síndrome cromossômica não é a mesma coisa do que se falar em erradicação da Zica, por exemplo.

Problemas genéticos sempre haverá entre nós. Só os detemos se fizermos peneiramento genético nos fetos. Ou seja, temos que matar antes do nascimento os que não se adequarem aos padrões genéticos normais. Erradicação aí é sinônimo de aniquilação sistemática. O que a Islândia está dizendo ao mundo é: aqui exterminamos sistematicamente todos os fetos que apresentam os sinais da Síndrome de Down.

Colocado nestes termos o fato não é mais motivo para celebração, nem é uma realização científica. É uma daquelas notícias que trazem um frio na espinha e nos lembram que, a mentalidade que levou a Alemanha a exterminar judeus, ciganos, homossexuais e aleijados nas câmaras de gás, ainda está bem viva no mundo hoje.

Para se chegar a um processo de aniquilação sistemática de seres humanos considerados “não normais” tem que se criar um consenso sobre o que seja normal, o que é a vida humana digna. É necessário enfatizar mais uma diferença aqui. Normal e viável são duas coisas diferentes. Uma mãe de um feto de 12 semanas pode receber a noticia de que seu bebê não tem cérebro ou tem uma malformação no coração ou pulmão que vai impedi-lo de viver se chegar a nascer.

Nesse caso o bebê não é viável: está condenado à morte por seus próprios problemas. Normal, no entanto é um conceito muito mais sutil. Depende de determinações culturais, de valores morais.

Quem então pode definir como deve ser o ser humano normal, que é digno de viver?

A ciência não pode ser a principal definidora de normalidade, porque sujeitos que somos a tantos problemas e variedades genéticas, a comunidade científica teria que escolher um tipo humano como o ideal. O regime nacional socialista de Hitler definiu o que era o ser humano “normal” por critérios que na época julgavam ser científicos. O normal era o ariano, alto de olhos azuis, de intelecto e forma física “superiores”.

O negro americano Jesse Owens, para vergonha alemã e alívio do resto do mundo, desafiou esse paradigma da superioridade ariana ganhando quatro medalhas de ouro nos jogos Olímpicos de 1936. Isto não parou a sandice nazista, infelizmente, mas ajudou a minar as raízes do conceito da superioridade racial. Normal, a partir de Owens não era mais o melhor, mas para os nazistas ainda era o ideal.

A síndrome de Down, de acordo com o que se sabe hoje, não é uma doença. É uma mutação genética que produz um novo tipo de ser humano. É um tipo mais fraco física e intelectualmente, mas quem conviveu com algum Down sabe que eles são infinitamente mais doces, meigos, alegres e responsivos ao amor e o carinho do que nós, os “normais”.

Uma repórter da BBC, mãe de uma criança com Down, produziu um documentário, em que investiga as causas dos abortos de Down, na Inglaterra, praticados em número quase tão absolutos quanto na Islândia.

O diagnóstico em si já é 99% preciso e não causa danos ao feto, e o plano do governo da Inglaterra é administrá-lo obrigatoriamente a todas as mulheres grávidas. Até agora 90% das mães inglesas que recebem o diagnóstico escolhem abortar.

O que leva todas essas mães a recusarem ser mães de bebês Down? A investigação levou a documentarista a checar como o diagnóstico positivo chega às mães. Tanto num país quanto no outro a “informação” é quase coerciva. As mães recebem uma lista enorme das possíveis doenças que o bebê Down vai contrair, das dificuldades no aprendizado e do custo. O quadro de terror não é amenizado por testemunhos positivos, ou até pela informação factual de que hoje uma grande parte deles vive vidas produtivas e felizes.

Essa discussão é maior do que a ciência de diagnóstico fetal. Ela atinge a nossa noção de humanidade. Quem é o ser humano? Já me envolvi nesse debate antes, quando trabalhei na conscientização em relação ao infanticídio indígena. Como definir o que é “pessoa”? O escrutínio em muitas tribos é tão severo quanto na Islândia. Em muitas culturas não ocidentais que não foram influenciadas pelo conceito do Imago Dei, que nos iguala a todos e nos atribui valor intrínseco, a noção de pessoa lhes é definida pelo custo social, não pelo valor humano.

Parece-me que nos reinos prósperos da medicina socializada do norte da Europa, tendo a Igreja falhado em sua missão de definir moralmente quem é o ser humano, quem define é o Estado, e obviamente ele o faz contando os custos. Na ausência dos valores cristãos, guiados pela mão da ciência, não existe outro caminho, mas um retorno inevitável à barbárie.

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