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A “reportagem” que cura: depois de relatar depressão, jornalista de Cuiabá começa a superar a doença

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A “reportagem” que cura: depois de relatar depressão, jornalista de Cuiabá começa a superar a doença
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Foi no dia 23 de março de 2018 que o jornalista Gláucio Nogueira, 35 anos, resolveu se abrir em seu perfil no Facebook e relatar – em palavras doces, firmes e sinceras – que estava lutando contra a depressão e a ansiedade. Ele sabia que o impacto do depoimento seria grande, mas não imaginava que seria tanto.

As palavras de Gláucio pegaram amigos, colegas e admiradores de surpresa. Ele afirmou que foi uma luta escrever, mas ainda mais difícil publicar. Ele chegou a colocar o texto em seu perfil e apagar em 10 segundos, mas, por fim, encorajado pela esposa, Silene Ferreira Farina, publicou. E o desabafo foi um momento decisivo para sua luta contra a doença.

O relato, que começava com a afirmação “sim, eu tenho depressão e ansiedade”, segundo Gláucio, deu voz a muitas pessoas que ainda não tinham coragem de falar da doença, mas, principalmente, o fez se sentir muito melhor em saber que já não era um peso que carregaria sozinho.

Início da doença

A depressão e a ansiedade começaram a se manifestar em novembro de 2017. Jornalista da área política, as crises tinham início sempre que ele precisava escrever uma matéria mais delicada, complexa, ou que teria um impacto maior.

“Eu chegava em casa à noite e, por volta das 22/23 horas, eu começava a pensar assim: ‘e se eu coloquei o nome do cara errado?’ E aquilo ganhava uma proporção como se eu já tivesse errado com certeza, como se eu tivesse com certeza feito a bobagem. Em muitas ocasiões eu pegava meu carro, saía de casa, ia até a redação, refazia toda a checagem dos fatos, dos dados, do texto, para me assegurar de que eu tinha feito de acordo com a minha apuração”, contou Gláucio.

As crises de insegurança com as matérias começaram a aparecer mais vezes durante a semana e o jornalista pensou que era porque estava precisando de férias. Ele saiu de férias em janeiro de 2018 e, durante esse período, ficou bem. Porém, quando retornou em fevereiro, as crises também voltaram.

“Eu pensei ‘poxa, estou descansado, não era para eu estar assim’. Aí passou das matérias mais complexas para qualquer matéria, passou de uma, duas, ou três vezes por semana, para todos os dias. E mesmo eu indo na redação, checando, copiando o texto e mandando por email e relendo o email, mesmo eu ligando para as pessoas, confirmando a história, nada disso mais fazia efeito”, lembrou o jornalista.

Em março deste ano, o jornalista chegou a dormir 3 horas da madrugada e acordar 5 horas. A paranoia começou a atingi-lo de tal forma que a primeira coisa que fazia ao acordar era olhar o Whatsapp para ver se não tinha ninguém ridicularizando-o por algum erro grave em uma matéria, ou um entrevistado dizendo que ele havia se equivocado, ou uma ameaça de processo.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Até que um dia, no início de março, falou para a esposa, Silene, que precisava de ajuda profissional. Foi ela quem marcou o psiquiatra, com quem Gláucio ficou conversando por duas horas na primeira consulta, no dia 15 de março, quando o jornalista estava em meio a uma crise – que até então não sabia se tratar de ansiedade – e chorava sem parar por conta de uma edição do jornal em que trabalhava, feita em meio à Operação Bereré.

“Ela [psiquiatra] chegou para mim e falou: ‘vamos dar uma parada’. A consulta foi numa quinta-feira, eu pensei: ‘ela vai me dar de sexta até domingo para eu descansar e na segunda eu volto’. Quando ela me entregou o atestado de 15 dias, foi um choque: eu nunca tinha ficado tanto tempo afastado do trabalho, no máximo quatro dias. Foi bem assustador”, recordou o jornalista.

A médica receitou um medicamento e pediu que ele passasse a frequentar um psicólogo. Os 15 dias de licença seriam para o remédio começar a fazer efeito. E foi dentro desse período que Gláucio  fez a publicação no Facebook.

Diferente de muitas pessoas que lidam com a doença, Gláucio conseguiu perceber que precisava de ajuda relativamente rápido e aceitou o diagnóstico com certa facilidade. Os motivos que o levaram a isso foi o fato de ter lidado com a esposa com problemas parecidos no passado e ter lido bastante sobre o assunto para ajudá-la.

Além disso, ele se sentia sempre inquieto, dormia poucas horas e estava sempre vivendo sobressaltos. “Chegou ao ponto de dar 06 horas da manhã e eu ir na varanda de casa para ver se não estava a polícia lá, se em alguma loucura eu não iria ser preso. Por que? Por nada, não tem uma investigação contra mim, nunca fiz absolutamente nada, mas a paranoia vai te dominando”, lamentou.

A pressão do jornalismo

O gatilho para as crises de Gláucio era o jornalismo. Ele trabalhava em um grande veículo de comunicação da Capital, o jornal impresso A Gazeta. Na semana passada, depois de sete anos como repórter, mudou para a assessoria de imprensa – e acredita que a pressão do jornalismo fazia com que as crises acontecessem e se agravassem.

“O bom jornalismo demanda muita responsabilidade. Eu trabalhava em um veículo de comunicação que é um canhão: se publica ali, repercute. E quando você para e pensa que às vezes o destino de uma pessoa pode estar na sua mão…”, disse Gláucio.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Ele sempre pensava que ao fazer uma matéria, mesmo quando uma pessoa não foi ainda nem indiciada, quem lesse já estaria condenando a pessoa citada. E, mesmo que depois viesse a fazer outra reportagem sobre a absolvição do acusado, muitos não acreditariam na inocência dele, fazendo com que sentisse o peso de uma “condenação pública” em suas costas.

“Eu penso que não é exclusividade do jornalismo e muito menos do veículo que eu trabalho, mas a responsabilidade de você levar a informação mais apurada, de forma isenta, de forma imparcial, sem prejudicar inocentes, tudo isso, quando você para pra analisar, é uma coisa estranha”, afirmou o jornalista.

Gláucio inclusive pensou em desistir do jornalismo, mas foi uma ideia momentânea, visto que, além de ser apaixonado pelo que faz e não se ver trabalhando com outra coisa, percebeu que em qualquer profissão a doença poderia se instalar e encontrar um gatilho, visto que estava em sua mente, não em seu emprego.

Ele chegou ao ponto de começar a ter crises relacionadas à família, à idade e até aos amigos, pensando: “será que tem algum amigo precisando de mim?”, “nossa, como eu sou um péssimo amigo”. Até que, em determinado momento, se seu celular tocava e ele não tinha o número na agenda, sentia vários tipos de medo.

“Como eu falei para a minha psiquiatra: ‘eu sinto que se eu não tratar isso agora, daqui a pouco eu vou ter um ataque cardíaco e eu vou morrer’. Sabe quando você vive tenso? Eu vivia assim o dia inteiro, das 05/06 da manhã até a hora de dormir”, relatou.

O papel da família

Há 10 anos casado com Silene e com um filho de 17 anos, foi dentro de casa que Gláucio encontrou seu porto seguro. Seu maior medo dentro da paranoia causada pela doença era decepcioná-los.

“Quando a gente está nessa vida que a gente leva [de jornalista], a gente demora anos para construir uma reputação e basta um erro e tudo vai embora, tudo acaba”, disse Gláucio.

Quando as crises estavam acontecendo com frequência, o jornalista viveu um dia de calmaria com a família, em que, sentados na sala de casa, ficaram conversando sobre amenidades e ele percebeu o quanto aquele momento o estava fazendo bem e trazendo tranquilidade.

Gláucio se sentiu encorajado e contou todos os motivos que causavam suas crises e o medo que sentia de decepcioná-los, foi quando o filho e a esposa responderam: “Não importa o erro que você cometer e se um dia você errar, a gente sabe a pessoa que você é”.

Era a força que Gláucio precisava para lutar contra a doença. Essa conversa foi no período de 15 dias em que estava licenciado e com a resposta das pessoas com quem ele mais se importava, sentiu-se amparado e mais tranquilo.

“Eu falei obrigado, porque as crises são assim, assim, assado e hoje eu não senti nada disso. Aí veio essa resposta deles e aquilo me fez pensar que ‘ainda que aconteça e todo mundo me vire as costas, o que é mais importante para mim eu vou continuar tendo’, isso foi muito importante”.

A publicação

Ele escreveu o desabafo no horário de almoço. A esposa estava viajando para São Paulo e Gláucio não conseguia decidir se publicava o texto, ou não. Chegou a colocar em sua página pessoal e a apagar por achar muito íntimo, até que enviou o texto para a esposa.

À época, ele estava começando a tomar o remédio receitado pela psiquiatra, então sentia muito sono – efeito colateral comum para quem inicia um tratamento psiquiátrico – e acabou dormindo assim que enviou o texto a Silene.

Ao acordar, viu que tinha uma mensagem dela falando que o texto estava muito legal e perguntando porque ele não publicava, ele relatou ter apagado e ela o encorajou a fazer o que tivesse vontade.

Quando ia levar o filho na academia, por volta das 18 horas, publicou e saiu de casa. Em menos de cinco minutos começou a receber mensagens, seja na própria publicação, seja por Whatsapp, ou inbox no Facebook, até mesmo de pessoas que ele nem mesmo conhecia.

“Algumas mensagens de apoio, de força, de ‘você vai conseguir sair dessa’, ‘você vai superar’, outros contando que passaram por situações semelhantes e conseguiram sair, e outros de pessoas que, além de se surpreenderem com a minha doença, também tinham esse problema”, contou Gláucio.

E completou: “Teve uma jornalista que que me disse assim: ‘se colocasse numa lista de 100 pessoas para eu separar quem eu acho que tem e quem eu acho que não tem depressão, você seria um dos últimos que eu acharia que tem’, e aí ela contou a experiência dela”.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Seu desabafo, segundo o jornalista, serviu para dar voz a outras pessoas. Ele ficou das 18 horas, quando publicou, até as 10 horas na manhã do dia seguinte recebendo mensagens. Cerca de 150 pessoas entraram em contato com ele, alguns, inclusive, que nem estavam na rede social e receberam a publicação de outra forma.

Ele acredita que deu dois grandes passos na busca pela superação: o primeiro foi reconhecer a doença, procurar ajuda e aceitar o diagnóstico; o segundo foi ter tornado o problema público, ajudando outras pessoas a também procurar ajuda.

“Porque é uma doença que afeta cada vez mais pessoas, é uma doença bastante democrática, ela não escolhe quem ela vai pegar, se é rico, se é pobre, se é branco, ou negro, homem, ou mulher, profissional bem-sucedido, ou um desempregado, ela não escolhe ninguém”, afirmou o jornalista.

Um dia depois da publicação, Gláucio saiu de casa e fez coisas comuns, como ir ao mercado. Mais dois dias depois foi ao banco, encontrou colegas e se sentia muito melhor ao perceber que não era mais um “peso” carregado somente entre ele e a família, visto que naquele momento todo mundo já sabia.

“É lógico que tem gente que fica indiferente e eu também não fiz para ‘venham me socorrer’, não é isso, mas para que as pessoas compreendam que se eu não estiver bem, faz parte do processo, se eu não estiver em um bom dia no trabalho, faz parte do processo, se eu não conseguir desempenhar bem minha função, faz parte do processo, um apoio que eu já tinha na minha família”.

O início da superação

Hoje Gláucio consegue conter as crises, que são menores e menos frequentes – e mantém a terapia e os remédios, que já não trazem nenhum efeito colateral. Cada vez que supera uma crise se sente vitorioso.

Até abandonar a vida de reportagem, ainda se sentia inseguro com os textos e só saía quando tinha certeza de que seu material estava de acordo com sua apuração, mas parou de retornar à redação.

Para ele, uma das coisas mais importantes é nunca sofrer, ou lutar contra a depressão sozinho, visto que a doença está bem longe de ser simples, mas com a ajuda certa e o tratamento adequado, a chance de ela ser superada é bem maior.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Gláucio disse se sentir em uma corda bamba, em que ainda há um grande percurso a ser percorrido e pode cair a qualquer momento, então é preciso manter o máximo de foco, atenção e cuidado, respeitando a doença e entendendo que, atualmente, ela ainda faz parte de seu cotidiano.

“A caminhada é longa, eu ainda estou bem distante do que eu acho que vou chegar, mas eu andei, em relação a onde eu estava. Isso, por si só, já me deixa muito feliz e realizado”.

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