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A religião institucional e a defesa da liberdade

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A religião institucional e a defesa da liberdade
Jean-Jacques-Rousseau: ele deu munição para o movimento revolucionário

Uma vez na Califórnia vi na fachada de uma igreja cristã protestante um banner colorido plantado no passeio, que dizia:

“Desiludido com as instituições? Venha para nossa reunião meditativa às 7 horas”.

As igrejas do lugar conhecem o público que têm, pensei. Elas sabem que a desilusão pós-moderna tomou conta dos jovens como uma doença contagiosa. A ideia da espiritualidade sem religião, “…amo Jesus, mas odeio religião”, bem disfarçada de verdade prática, é vista por muitos como uma proposta sábia. Mas o que é que o líder da igreja não percebeu a respeito desta moda desinstitucionalizante?

Primeiro tenho que confessar que a descrença nas instituições serviu de pilar à minha rebeldia juvenil por muito tempo. Se naquela época eu tivesse que definir os problemas do mundo numa equação simples o faria assim:

Pessoas nobres e boas + Instituições sociais falidas = O mundo ruim que aí está.

Para mim, a malignidade das instituições era uma questão axiomática. Não precisava de explicações. Nunca pensei que fosse uma ideia política, nem que houvesse uma alternativa. Todas as instituições da civilização ocidental simplesmente representavam o mal em que estamos mergulhados.

Mas o fato é que esta decepção com o estabelecido é parte de um construto ideológico. Ela se encontra na base da pirâmide do movimento revolucionário. A revolução – e como tal, entenda: a destruição radical ou paulatina da ordem vigente – precisa da suposição de que as instituições são a causa do sofrimento humano e não os indivíduos.

A ideia vem do filósofo francês Jean Jacques Rousseau.  Sua frase: “o homem nasceu livre e em todos os lugares o vejo acorrentado”, epitomiza a distinção. Os seres humanos são intrinsecamente bons, livres, mas as instituições criadas e mantidas pela sociedade os acorrentam. Somos todos inclinados para o bem, mas a sociedade que construímos é que é o problema. Em outras palavras, a ideia do “sistema opressor” de um jeito elegante isenta a todos da responsabilidade pelo estado das coisas, e ao mesmo tempo aponta um bode-expiatório.

Construções abstratas como o racismo sistêmico, a opressão contra o pobre, o sistema patriarcal, são o inimigo principal dos revolucionários. Mas se somos bons e livres, como nos encontramos acorrentados? Pelas mãos de quem? Como podemos ter construído uma sociedade tão ruim do alto da nossa bondade? Não existem respostas lógicas para as muitas perguntas que a ideia levanta. Mas não importa. A culpa é do sistema. Nem a autocontradição óbvia desta premissa tirou dela a mística de explicar o estado de coisas com um apelo romântico que arrebata a muitos.

Reconhecer que o mundo é injusto e que existe muito sofrimento humano causado pelo próprio ser humano seria simples demais e pesado demais. Implicaria em responsabilidade. É mais fácil culpar monstros imaginários. Ao denunciá-los me isento de responsabilidade pessoal e além disto me torno um salvador dos mais desavisados. Muitos filósofos franceses do iluminismo negavam a existência de Deus e de uma moral transcendente como parte intrínseca do ser humano. A religião para eles se tornou um dos “monstros” a serem derrotados para a liberação humana.

Denis Diderot numa frase resumiu o projeto político da revolução francesa. Ele estava irmanado com as ideias de Rousseau, tendo sido seu contemporâneo. “O homem só será livre quando o último rei for enforcado com as vísceras do último clérigo”. A imagem é horrível, mas eu não posso deixar de ver que a ideia tem apelo. Tudo seria muito fácil se fosse simples assim. Eliminaria-se as instituições e toda consciência moral inspirada pela religião e seríamos todos livres e vivendo num paraíso.

O rio de sangue que correu na França muitas décadas depois da revolução nos mostra que esta estratégia não funcionou na época, e continuou não funcionando em outras versões da mesma ideia ao longo da história da humanidade. Poder justifica o derramamento de sangue. Quando quem está no poder propõe o que é moral ou não, sempre vai justificar o mal que comete. Como explicou muito bem Robespierre, a virtude redefine o terror quando a serviço da causa: “Virtude, sem a qual o terror é destrutivo, terror sem o qual a virtude é impotente; terror quando a serviço da justiça, severa e inflexível, é a emanação da virtude”.

A fé em Deus cria um problema político para o tirano porque põe a todos em pé de igualdade. Se existe Deus, eu não posso me arrogar o direito de me apoderar do destino da humanidade e nem posso deixar que outros se apoderem do meu destino. A fé nos deixa conscientes de nossa necessidade de Deus e de outros, além de nos dar um régua moral para julgar o próprio Estado.

A fé nos mostra quem é o verdadeiro inimigo de uma sociedade sadia. Não são as instituições, o sistema, alegorias do mal na cosmovisão esquerdista. Para os cristãos este inimigo é o próprio homem, como nas palavras do filósofo Hobbes, “Homō hominī lúpus” – o homem para um outro homem é um lobo -, ou seja, seres humanos podem ser predatórios e cruéis uns com os outros como os lobos, quando lhes convêm. Toda polidez civilizatória se torna crueldade selvagem se meus interesses estão em jogo. O inimigo de uma sociedade melhor sou eu, assim como a sua esperança.

Mas esta fé não pode ser meramente filosófica, ou de cunho privado, ela precisa ser ancorada na história e na instituição. Se ela é reduzida à esfera interna apenas, uma mera especulação espiritual individual, torna-se irrelevante. É por isto que o movimento que quer separar Jesus de religião: “Quero Jesus, mas não quero a religião” – soa sábio, mas na verdade é uma proposta idiota e inútil. Idiota como proposta de fé, porque se eu quero inventar um Jesus que se adéqua a mim apenas, estou desprezando o Jesus histórico, e inútil porque deixa de ser o combustível mais importante para a emancipação política disponível ao ser humano.

O Estado que quer se impor como a única alternativa de gênesis social tem que eliminar os resíduos das instituições religiosas que permitem ao individuo sua independência. Esta espiritualidade pós-moderna desvinculada da tradição religiosa se torna conveniente à tirania estatal.

Uma vez que eu me desligo de tudo o que torna a religião uma herança universal e histórica, que vai além de minha percepção limitada de individuo, eu destruo o poder que ela tem como contraproposta de unificação social.

A igreja modernosa na avenida movimentada em Los Angeles na Califórnia, ao aderir à febre anti-institucionalista e tentar se definir num modelo hiper-privado para atrair fiéis, estava na verdade apenas dando um atestado de vassalagem às ordens dos tiranos que acenam aos fiéis com a falsa liberdade do Estado poderoso. Não nos deixemos enganar. As instituições sociais, e entre elas mais do que nenhuma as igrejas cristãs, são nossas últimas defesas contra a tirania.

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