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A palavra de Antônio Mulato

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A palavra de Antônio Mulato
Foto: Cida Rodrigues

“…E com Deus eu me deito, com Deus eu me alevanto, com a graça de Deus e do Divino Espírito Santo”. Naquela tarde quente de 2010, último dia de trabalho de campo no quilombo de Mata Cavalo, o senhor Antônio Mulato não me deixou ir embora antes de ensinar-me uma longa oração, que repetiu pacientemente inúmeras vezes para que eu decorasse. Aqueles eram os últimos momentos de um dia cheio: cheguei na comunidade logo pela manhã, quando já era preparada uma suculenta galinhada. Bebidas e comidas com fartura – tão ao gosto local – esperavam-me para marcar ritualmente a despedida, depois de tantas festas, tantas prosas. Entre conversas e rezas, parti.

Do alto dos seus 113 anos, quem partiu agora foi ele. Senhor Antônio Mulato foi recebido com a maior das festas por São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e todas as demais divindades e antepassados, orgulhosos que estão com a sua grandeza. Antônio Benedito da Conceição nasceu no dia 12 de junho de 1905, bem no Dia dos Namorados (como sempre fez questão de frisar!), e pelo longo caminho foi deixando suas lições. Pois bem, então peço licença – a ele, à família, à ancestralidade – para contar apenas duas delas. Dois dedinhos de prosa, somente.

O quilombo de Mata Cavalo, situado em Nossa Senhora de Livramento, dá nomes e rostos a um longo processo de resistência. Formou-se a partir de uma doação feita em 1883, quando Anna Tavares deixou o seu legado para um grupo de homens e mulheres escravizados. Depois dos tempos de paz, a comunidade sofreu as consequências da Marcha para o Oeste, desencadeada no durante a era Vargas, expulsando os seus habitantes para as periferias urbanas. Depois de décadas em diáspora, os seus membros organizaram-se e iniciaram um movimento de retorno – e entre tempos de tranquilidade e violência, o quilombo seguiu resistindo.

O processo de expulsão dos anos 1940 foi deflagrado quando o novo proprietário local, que adquiriu uma área na mesma sesmaria onde se situava o quilombo, iniciou um movimento de grilagem de terras, ampliando os limites da área adquirida. Os quilombolas, que não eram alfabetizados, até ajudaram na medição das terras que seriam depois registradas em cartório em nome do fazendeiro.

Pois vejam: o Sr. Antônio Mulato pertencia a uma das poucas famílias que permaneceram na área, por conseguirem comprar de volta uma parte das terras que, originalmente, já eram suas. E ele, inteligente como sempre foi, logo percebeu um problema central que deixara os quilombolas tão indefesos. Eis o que ele me contou numa manhã de 2006: “[O fazendeiro] viu que o povo tudo era bobo, num tinha estudo nenhum, como mais ou meno o pobre ajudô ele, ele lá levantô, foi erguendo a cara já de poder, comprou um pedacinho da terra ali. Comprô, inventô, depois que ele viu que o povo era bobo, inventô medir”. Ou seja: algo tão concreto como a perda de terras estava conectado à falta de acesso aos estudos.

E o que ele fez? Circulou pela região em busca de tudo aquilo que fosse necessário para a abertura de uma escola: “Arrumei papel, tudo, lápis e tudo, pai, mãe, criança, arranjei com o prefeito”. Quanto ao espaço, a escola foi aberta bem na sede da fazenda onde um dia fora Mata Cavalo. No primeiro dia de aulas, lá se foi um dos seus filhos de caderno nas mãos, feliz por estudar na escola criada por seu pai. Mas a professora não aceitou: “Mandou, porque era preto, pode fazer meia-volta. Aqui a escola é só de branco”.

[featured_paragraph]Pois vejam, naquela manhã ensolarada, acomodado na poltrona da sala de sua filha Tereza, ele me olhou com os olhos muito vivos e perguntou, com uma indisfarçável satisfação: “E o que é que eu fiz? A senhora adivinha o que é que eu fiz?”. E sabem o que ele fez? Foi à casa do fazendeiro munido do legítimo título de dono da escola. Foi tirar suas satisfações com a professora, que “botou assento perto de mim contando tanta vantagem… Vantagem…” Quando o Sr. Antônio Mulato ignorou o desdém e exigiu que todos os negros tivessem acesso ao ensino, ela recorreu, incrédula, ao fazendeiro. Mas o poderoso dono das terras precisou negar o seu poder de interferência sobre este inesperado episódio, limitando-se a confirmar a autoridade de Antônio Mulato. Usando as suas palavras, o fazendeiro teria dito: “Escola é dele. A casa é meu”. E assim as crianças negras seguiram estudando, o que gerou impactos sobre o futuro daquele povo. Pensem comigo um instante sobre o poder transformador dessas palavras…[/featured_paragraph]

Bem, mas não resisto a contar mais um caso, gota de oceano. Então vamos lá. Quando cheguei naquela manhã de 2010 na casa de dona Tereza Conceição Arruda, por volta das nove horas, o dia do Sr. Antônio Mulato já ia pela metade: ele acordara às 4h30 da madrugada. Depois de rezar, tomou guaraná ralado, uma dose de vinho, comeu, tomou banho e aprontou-se para a festa de seus 105 anos. Logo cedo, já estava na casa da filha para esperar pelos convidados. Encontrei o aniversariante no varandão que serviria de palco para os múltiplos cenários da festa – cururu, missa, baile – já em plena atividade: numa animada roda, entoava cantigas com outros cururueiros. De pandeiro na mão, acompanhava sem vacilo as violas-de-cocho e ganzás.

Lá pelas tantas, chegou uma equipe de reportagem para cobrir o evento e, durante a entrevista, a repórter quis saber o segredo da longevidade de Antônio Mulato. Ele respondeu: “Ah, eu faço amizade com tudo. Amizade com as véia, os véio, tudo eu ajudo!” Haveria uma desconexão entre pergunta e resposta? Por via das dúvidas, ela reformulou a indagação: “Mas qual é o segredo da sua saúde?”. Sua resposta foi imediata: “Ah, é rapadura com mandioca!”. Numa outra oportunidade, perguntei ao Sr. Antônio Mulato a respeito do episódio, e ele mencionou que, realmente, sua longevidade provinha do gosto por ajudar os outros. Era dali que ele tirava sua alegria – e a alegria era o motor de sua impressionante disposição. Referia-se, portanto, a uma outra lógica, a partir da qual o bem-estar individual é indissociável do bem-estar coletivo.

Olhos fechados, em silêncio. Conseguem escutar comigo o eco dessa sabedoria? Ah, alegria das autênticas, profundas, é o que sinto ao lembrar dessas histórias. É uma gratidão daquelas que inundam, encharcam – ter conhecido e aprendido tanto com Antônio Benedito da Conceição. Que São Benedito esteja neste instante segurando a sua mão, meu amigo. E que a festa continue.

Carla Águas é jornalista e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB).

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