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A irmandade dos pardos da Igreja da Boa Morte

A arte de bem viver e bem morrer em Cuiabá de 1810

10 minutos de leitura
A irmandade dos pardos da Igreja da Boa Morte
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Toda vez que nos depararmos com alguns patrimônios históricos, seja público, prédios, igrejas e casarões ou privados como as relíquias familiares, lembranças, fotografais, relicários antigos temos que antes de qualquer impressão, indagar: por que esses imóveis ou  objetos chegaram em nossas mãos?

Precisamos interrogá-los: por que esse escapulário ou imagem sacra chegou até a mim e fui o escolhido pra guardá-las?  Por que essa relíquia  foi escolhida dentre tantas outras? Qual a importância e significado desses bens pra quem os guardou? Porque este prédio, igreja ou casa está bem preservado e intacto e os outros não?

A partir da busca dessas respostas aprenderemos a entender alguns significados do patrimônio histórico.

Seguindo os sinais que os acasos da vida nos propõem, um certo sábado de um dia qualquer, saí da casa, no centro antigo de Cuiabá, logo pela manhã cedinho e fui fazer uma caminhada, há um ano atrás.

De longe ouvi o badalar dos sinos da Igreja da Boa Morte que fica aqui perto. Fui saber o que estava acontecendo e estava começando a centenária missa das 6:30, aos sábados na igreja, com poucos fiéis presentes, era um convite.

Foi nesse dia que entrei pela primeira vez na singela igreja que vivia de portas fechadas, interrompi a caminhada e ouvi os chamados históricos e celestiais.

O patrimônio histórico ganha outros significados quando ainda  cumprem função social, mesmo que seja diferente da sua tradição cultural, sempre serão dotados de inúmeros significados internos e externos nas memórias sociais de ontem e de hoje.

Por isso, que para além do turismo fotográfico, há que se conhecer e conviver com os usos e costumes desses espaços de memória e ter uma imersão de fato na sua importância cultural.

O antropólogo Bronislaw Malinowsky chamou esse método de aprendizagem de “observação participante”. Já Marilena Chauí, definiu numa frase essa experiência: “ninguém aprende a nadar sem entrar n’agua”.

Com olhar mais atento sobre a igreja descobri na história da devoção e culto à santa, que se trata de uma das invocações de Maria, que é denominada Boa Morte e da Glória ao mesmo tempo. Também chamado de trânsito de Maria, que encaminha o bem morrer e a entrada na glória celestial.

Essa descoberta é um bálsamo para as almas aflitas em qualquer tempo, principalmente nesses dias em que a  mortandade ronda por perto.

Por trás das fachadas das paredes grossas de terra crua da igreja, visíveis superficialmente por fora pelos passantes apressados da rua ou seguidos pelos cliques infinitos vazios das fotos digitais, existe um passado-presente vivo. Seu projeto e a escolha do local começou em 1809 com a fundação de uma irmandade ativa, formada de pardos, que construiu e administrou com zelo essa paróquia ao longo dos tempos para que chegasse até a nós, em 2020, uma cápsula do tempo.

Uma confraria de obrigação formada por homens e mulheres de cor, abrasileirados na miscigenação, com predomínio dos pretos e índios (livres, forros) ascendidos socialmente. Pessoas que por meio da fé conquistaram seu espaço social e espiritual.

Não por acaso a Igreja da Boa Morte foi construída em 1810 fora do quadrilátero principal da Vila de Cuiabá nos arrabaldes, como se dizia. Seu entorno e jurisdição canônica no sentido atual abrangia da altura da rua Presidente Marques até a avenida Mato Grosso, alcançando os atuais bairros Lavapés e Quilombo, que são de relevos íngremes, morrarias, espacialidades tradicionalmente de gente de cor, escravos fugidos e ex-escravos livres e índios em geral.

A distinção entre a Boa Morte e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Cuiabá  era exatamente esse status social dos pretos e índios na Vila Real, entre os espaços dos livres que se autodenominavam pardos  e dos escravos e pobres cativos.

Encontrei no Arquivo Público de Mato Grosso em documento inéditos, importantes pistas e indícios capazes de apresentar um pouco das memórias e vivências históricas daquele espaço sagrado da Boa Morte no passado. O documento é um manuscrito antigo, denominado Compromisso da Irmandade dos Pardos da Boa Morte, fundada em 1809, o mesmo traz um universo fascinante do cotidiano dos pardos na Cuiabá antiga.

São informações valiosas sobre a intrincada rede de obrigações e competências que mantinha viva a religiosidade daquela igreja numa sociedade matizada e excludente. Tal passado apagados pelo tempo voltaram à tona do nada depois daquele badalar de sinos na minha cabeça, como uma anunciação.

Quantos de nós temos capacidade, sensibilidade para ouvir esses sinais que os lugares e objetos da memória nos emite diariamente?

A principal obrigação da irmandade era celebrar a festa da santa anualmente no dia 15 de agosto.

Como a sociedade escravista colonial existiam estratificações sociais, essas associações eram subdivididas em categorias. A primeira, formada por aqueles provedores ricos que além das obrigações das anuidades poderiam adquirir uma joia de 300 mil réis para a festa da santa.

A segunda classe formada por 12 irmãos de mesa de reza e empregados e, a terceira classe, formada pelos menores e analfabetos que seriam responsáveis pelo saco da esmola da igreja e pela manutenção das velas de cera nas celebrações.

Todos membros novos deveriam pagar 12 mil réis na entrada e como os demais membros, 3 mil de anualidade.

A organização da irmandade previa os seguintes cargos eleitos anualmente escolhidos entre os cidadãos da 1a e 2a classe na seguinte ordem hierárquica: 1 prior, 1 provedor, 1 provedora, 1 secretário, 1 tesoureiro, 1 procurador e 1 andador, 12 irmãos mesários e 12 esmoleiros.

Se algum irmão bancasse a festa da santa, teria direito a 15 anos de assento na mesa, com diploma emitido pela paroquia. Destaco aqui a importância das festas religiosas na fronteira entre o sagrado e o profano e na manutenção dos status sociais e espaços sagrados.

Ressaltamos que a ordem dos assentos e acesso aos bancos nas celebrações da igreja, seguia rigorosamente essa hierarquia do compromisso e as primeiras filas mais próximas ao altar e do ministro da palavra eram sempre da primeira classe em diante de forma decrescente.

O documento também define os casos de expulsão dos membros da irmandade e, por outro lado, demonstra a existência de redes de solidariedade àqueles que por ventura caíram em miséria ou desgraça, havendo inclusive a obrigação da mesa socorrer esses infelizes.

Essas redes de solidariedade entre os pretos e pardos nas irmandades ao longo da história colonial sustentou várias estratégias de fuga na colônia, financiamento de quilombos e alforrias de pretos escravizados. Sob os auspícios eclesiásticos das organizações religiosas, os grupos sociais se articulavam intensamente nos bastidores das sacristias.

Todos os membros da mesa tinham distinção nos cultos e procissões, com uso de uma opa branca de seda, cetim ou tafetá e outros pingentes amarados com fita azul no antebraço. O  prior, cargo máximo da irmandade, e o provedor tinham nos cultos e eventos religiosos lugar destacado nos assentos, uma opa diferenciada, bordada á ouro com duas esfinges de Nossa Senhora da Boa Morte no peito, uma vara  de mão de prata da irmandade e uma fita azul no antebraço direito.

O tesoureiro, por sua vez, tinha uma clave de prata amarrada com uma  fita azul no antebraço; O  secretário,  um pingente de pena de prata no mesmo local; O provedor, a letra P, e o Andador que era o responsável de organizar as tochas na procissão e carregar o crucifixo, a letra A em destaque com fita azul no braço.

Os irmãos de mesa poderiam usar apenas um laço azul amarrado e os irmãos da esmola não possuíam diferenciação nenhuma.

Além dessas distinções sociais nas vestimentas,na morte os associados da confraria tinham muitas benesses: várias missas que variavam de quatro a dez celebrações dependendo da posição na irmandade; Extrema unção do Santo Padre; acompanhamento dos irmãos nas enfermidades; Sepultura em local reservado no Cemitério da Piedade (também segregado da grade pra cima e da grade pra baixo, conforme a graduação de cada irmão); Mortalha diferenciada e caixão personalizado com acompanhamento no cortejo pelos andadores, com crucifixo e tochas da irmandade.

Numa sociedade religiosa segregada socialmente, esses privilégios, mercês, títulos, dons e benesses possibilitavam um pertencimento, uma mobilidade e status social em todas os espaços urbanos, públicos e privados garantindo o bem viver.

A irmandade, em 1871 tinha predominância de mulheres e era formada por 190 membros, sendo 85 homens e 105 mulheres, 6 padres e 19 militares (10 alferes, 06 capitães, 2 sargentos e 1 tenente).

Depois desse longa caminhada de mais de 50 minutos, descobri porque a igreja permanecia em pé apesar do tempo e não ter sofrido até hoje nenhuma grande reforma, dentro daquela provocação inicial que fiz na busca dos porquês.

Cheguei a conclusão que a irmandade que construiu a igreja queria na verdade deixar um documento-monumento histórico para marcar a mudança e a presença na sociedade colonial de uma nova classe econômica, nativa da terra.

A classe dos pardos, sem discutir as definições de categorias políticas ou relações de racismo e escravidão, foi e é o resultado dos encontros violentos e/ou consentidos e assimétricos  entre pretos, brancos e índios, que formaram peculiaridades próprias que nos caracterizam no eu e no outro enquanto  povo e nação, alegrias e tristezas.

Aliás, até hoje, parte dos brasileiros se autodefinem nos censos do IBGE como pardos, olhando sob o prisma da teoria do branqueamento ou não, isso é um fato. São apenas algumas reflexões das muitas possíveis que nasceram a partir desse olhar curioso sobre essa igreja, o eu e o nós, nossas identidades plurais e sincréticas.

Um templo religioso de pardos que abrigava uma nova “classe” social que não se enxergava naquela época  frequentando  a irmandade e igreja matriz dos brancos do Bom Jesus de Cuiabá  e nem tão pouco, na igreja de escravos pretos e pobres de Nossa Sra. do Rosário.

Na dimensão simbólica e religiosa, a igreja manteve-se preservada primeiramente por zelo da Igreja Católica, mas também para advertir ás novas gerações sobre a necessidade do sagrado diante da inevitável morte que mais certo ou mais tarde chegará para todos indistintamente e a fé na salvação e vida eterna.

Nesse momento de pandemia, a ciência foi posta à prova e a fé se tornou o único consolo e socorro para muitos e a busca da Boa Morte e a Glória da vida eterna se tornou muito importante.

Sempre achei muito digno e atual a proposta dessa igreja, que para muitos é mórbida, uma santa dedicada a hora final, já que existe a N. Sra.do Bom Parto, Desatadora de Nós, nada mais justo que á Santa da Boa Morte.

Serve também para nos advertir, sobre nossa fragilidade, nossa finitude humana e sobre os cuidados terrenos morais e religiosos que precisamos ter para termos uma boa passagem e alcançarmos a vida eterna.

Não por coincidência esse é o segundo artigo que escrevo sobre a igreja que é tombada pelo patrimônio histórico e muito bem administrada pela Igreja Católica, justamente no dia 15/08, quando se comemorava oficialmente o dia da santa.

Já que esse ano não teremos badalar de sinos, missas, procissão, fogos, quermesse e festas como antigamente, resta-nos em homenagem  ainda da santa lembrar que toda relíquia familiar ou patrimônio edificado tem uma riqueza simbólica imaterial intrínseca que ultrapassa a dimensão física e que permanecem vivos nas memórias dos documentos-monumentos, na oralidade e no imaginária da população.

Vestígios essenciais para qualidade de vida e saúde mental das pessoas nas cidades, para entender quem somos e da onde viemos numa sociedade adoecida, violenta, extremamente virtual e motivada pelos “instanteísmos” e remédios ansiolíticos.

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