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A impunidade, nosso vício colonial

O país inteiro se tornou um couto de homiziados para os políticos corruptos

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A impunidade, nosso vício colonial

A lei portuguesa dos séculos XV e XVI era extremamente mais dura com os que se atreviam a desafiar tabus e crenças religiosas, do que com os que cometiam crimes contra indivíduos. Por exemplo, uma lei de 7 de janeiro de 1453 mandava que a pessoa que cometesse um crime “místico”, como lançar maldição em alguém, por exemplo, ou usasse de feitiçaria, tivesse sua língua retirada pelo pescoço e depois fosse queimada viva.

Com outros crimes a lei era leniente[1]. Crimes como assassinatos, estupros, violência de todos os tipos e roubos eram punidos apenas com meros pagamentos, feitos com galinha, porcos, pequenas multas.

Outros historiadores portugueses contam que os crimes que eram ou não passíveis de punição variavam de acordo com o sentimento do momento e com o que a Coroa considerasse particularmente ofensivo. Por exemplo: cunhar moedas falsas e sodomia durante um tempo foi considerado uma ofensa contra a Coroa.

Para sermos capazes de colocar em contexto a diferença de gravidade entre os crimes contra o indivíduo e os crimes religiosos, há que se entender que a Coroa de Portugal existia em estreita relação com a hierarquia católica. Ou seja, um crime contra a Igreja era um crime contra o poder hegemônico do Estado, uma verdadeira ameaça ao status quo de quem detinha o poder.

O sistema de punição, dava direito ao criminoso de em alguns casos  se refugiar em lugares chamados de “coutos de homiziados.”  Os coutos, ou terras coutadas, eram espaços livres do poder real, onde os criminosos não podiam ser perseguidos. O verbo homiziar significa “dar guarida e proteção contra a ação da justiça. Ou seja, o acoutado ali tinha certeza da impunidade. O costume perdurou de meados do século XIV até 1790, quando foi abolido.

Esse costume de separar um espaço para a proteção de criminosos contra a fúria da justiça lembra as cidades de refúgio mencionadas no Velho Testamento, que eram parte do sistema judiciário de Israel. Eram seis as cidades levíticas mencionadas no Torah. Mas as semelhanças do costume Israelita de “redução de pena” com os coutos de homiziados param aí.

A ideia de estipular um espaço que garanta a proteção dos que são culpados aos olhos da sociedade, assegurando a  impunidade,  pode ser semelhante ao português, mas as pressuposições subjacentes são bem diferentes. Na Bíblia, as cidades-refúgio eram usadas quando o crime era cometido por acidente, ou seja, em linguagem atual, em caso de homicídio culposo. O criminoso era julgado pelo crime, considerado culpado, mas por causa do caráter acidental ou não-intencional do homicídio, era dada a ele a oportunidade de fugir para uma das cidades-refúgio e lá permanecer até a morte do Sumo sacerdote em exercício na ocasião do crime. Ou seja, a lei de Israel restringia o derramamento de sangue na punição dos crimes baseada na intencionalidade.[2]

Todos os crimes eram punidos duramente, mas ao contrário de muitas civilizações antigas, as leis não eram arbitrárias, ou seja, não mudavam à revelia de quem exercia o poder. As punições eram reguladas e as noções de intenção, que determinam o grau de culpabilidade, e a proporcionalidade (olho por olho, dente por dente), conceito judicial considerado moderno, já estavam presentes.

Além disso, a lei mosaica não faz diferença na gravidade dos crimes contra o “Estado,” no caso uma teocracia,  e crimes contra a população comum, o que parece ser o caso da lei portuguesa. Crimes contra Deus e crimes contra a vida humana individual, na lei mosaica, são punidos com igual gravidade porque Deus é o autor da vida.

O homicida, ao tirar a vida do simples átomo social que é o indivíduo, também estava cometendo um crime contra o próprio Deus e, portanto, contra a sociedade como um todo.

A lei portuguesa parece funcionar com um princípio diferente. A Coroa tinha o direito de estabelecer os crimes que protegia e os crimes que queria punir, baseada não numa noção de direito como, por exemplo, a lei natural, ou numa Constituição fixa, (que Portugal só foi ter em 1822), mas em definições arbitrárias que tinham como prioridade a segurança da Coroa e não do cidadão.

Será que o sistema judicial do Portugal colonial nos lembra de alguma coisa? As leis brasileiras até hoje são construídas de acordo com o espírito do momento. O momento atual é extremamente leniente com o crime. Assassinos, se pegarem pena máxima, não ficam mais de seis anos na cadeia. Atenuantes, apelos sem fim, e agora apelo até ao Supremo, sem encarceramento durante o tempo que se gastar, nos mostram o espírito de nossas leis. O processo judicial todo parece ter como finalidade evitar a punição pelo crime, ao invés de exercê-la.

Ainda mais os crimes praticados pelos políticos, estes nem devem ser considerados crimes, como têm sugerido até por jornalistas de veículos respeitados como a Folha de São Paulo.[3] Por que ir para a cadeia por roubar dinheiro público? Ou devolver? Já era, já foi, vamos esquecer e eleger o político criminoso novamente.

Criamos um “couto de homiziados” conceitual que chamamos de “imunidade parlamentar”. Cuidado, juízes que se atreverem a julgar os acusados; policiais que insistirem em algemá-los, ou procurar vestígios de ilicitudes em suas contas bancárias. Estes, sim, sentirão o peso da mão do Estado.

É tudo uma questão de ponto de referência. A nossa referência para o conceito de nação é institucional. Nação é o governo, e não eu. Essa construção cria uma relação perversa de subserviência entre o que deveria ser a justiça e os que ocupam o poder.

Se a nação é o Estado e não a sociedade – os representantes deste Estado, os que o personificam, no caso do Brasil as oligarquias político-econômicas, devem ser protegidos pela lei para o “benefício” indireto da população.

Eles ganham a legitimidade para a isenção moral, como os monarcas absolutistas que representavam o próprio Deus na Terra. Crime é ameaçar a ordem vigente e acusar essas pessoas, baluartes do que chamamos de nação, de cometeram crimes. O país inteiro se tornou um couto de homiziados para os políticos corruptos.

“Ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”

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[1] Casa Grande e Senzala, Cap 1

[2] Números 35:6-34

[3] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2019/11/cadeia-para-os-corruptos.shtml

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