Numa tarde chuvosa de dezembro, na avenida Fernando Corrêa, na altura do shopping 3 Américas, um sujeito franzino foi visto ao atravessar a pista, uma das mais acessadas por quem vai no sentido centro da capital de Mato Grosso, enquanto dançava.

Ele ia de uma sarjeta à outra, os passos arrastados e contínuos no meio da avenida, sem olhar para os lados. Não se virou, como quem obedece a certo instinto de sobrevivência, nem sequer notou a enxurrada de carros que freou sincronicamente diante do pedestre. Aquela não era a primeira vez.

Dias antes, eu havia flagrado uma mulher que puxava uma criança pela mão e cruzava a avenida Jornalista Arquimedes Pereira Lima sem tirar os olhos dos próprios pés. Não notou o fluxo de veículos a 60 quilômetros por hora na sua direção, não irrompeu num provável movimento involuntário do pescoço nem sequer escorregou as pupilas pelo rabo do olho. Foi atravessando, e pronto. Sem pressa, sem faixa de pedestre, com a calma de um jabuti. Fosse em São Paulo, no mínimo teria saído acompanhada por uma dúzia de buzinadas, pensei. Mas nada se ouviu. Formou-se uma fila de oito carros que brecaram respeitosamente. Depois tudo voltou ao normal.

Quando flagrei cena parecida pela terceira vez – uma senhora com sua sombrinha atravessando a avenida Beira Rio com total displicência – suspeitei de que deveria haver uma explicação científica para aquilo. Anotei um parágrafo repentino depois do jantar: “Cuiabá é uma cidade de pedestres que atravessam a rua sem olhar para os lados, um lugar raro no país, onde motoristas e motociclistas brecam seus veículos cordialmente assim que um pé toca o asfalto”. Poderia ser só uma assombrosa coincidência, uma observação delirante ou um devaneio banal.  No dia seguinte, fui a campo.

A tática de pesquisa de campo seguia uma receita simples: na hora de atravessar avenidas conturbadas era preciso ameaçar um passo na frente de um carro em movimento, e depois recuar. A partir de então seria possível anotar as reações dos motoristas.

Na maioria das vezes, principalmente nas avenidas Jornalista Arquimedes Pereira Lima, a estrada do Moinho, na avenida Itália, na avenida das Torres, na Carmindo de Campos e na Fernando Corrêa, eles foram gentis e autorizaram a passagem sem reclamar. Várias travessias mais tarde, o segundo passo seria interrogar quem entende do assunto.

“Ah, se aqui é assim cê quer ver em Tangará. Vai lá pra Tangará pra cê ver. Lá cê põe o pezinho na rua e o sujeito para na hora”, disse um taxista, do qual só me recordo o primeiro nome, João, e seu gosto musical, Rock Gospel, além da história de que saiu de Brasília para encontrar os tios em Cuiabá nos anos 60 e nunca mais voltou. “Não sei não, acho que aqui é igual a qualquer lugar, né? O pedestre tem preferência”, avaliou Wellington, motorista de Uber.

A gentileza generalizada dos motoristas cuiabanos talvez seja a principal razão pela qual os pedestres são tão displicentes. Ou então, quem sabe, o motivo pode estar nas rotatórias – porque Cuiabá é uma cidade que prefere rotatórias a semáforos: “Na rotatória, se não para, bate”, diz Rodrigo, motorista de Uber há duas semanas. Como todos os outros, ele tinha entrado para o corte na folha de pagamento da empresa em que trabalhava. “Por isso, todo mundo para. Antigamente tinha muito sinaleiro aqui em Cuiabá, aí tiraram. Fizeram essas rotatórias. O povo para porque sabe que se não parar vai bater. Com pedestre é a mesma coisa, o povo para. Por que que vai ter pressa, né?”.

Mais tarde, percebi que a chave para o problema estava na elaboração de uma equação aritmética que levasse em consideração a evolução do número de semáforos na cidade e a incidência de atropelamentos em trechos aleatórios de avenidas minimamente desassossegadas. Concluí que o melhor era abandonar as conclusões. E que o Brasil é um país onde até a obediência a normas básicas de trânsito surpreende.

Assinatura Cuiaba 300

 

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