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A aventura do iê-iê-iê: conheça a primeira banda de rock de Mato Grosso

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A aventura do iê-iê-iê: conheça a primeira banda de rock de Mato Grosso

Woodstook reúne milhares em três dias de “paz & amor”, Marilyn Monroe morre de overdose aos 36 anos e o ex-presidente dos EUA John Kennedy é assassinado. Che Guevara faz revolução na ilha de Cuba, a Seleção Brasileira conquista o tricampeonato e o homem chega à Lua. Explode a Beatlemania! JK constrói Brasília, Brigitte Bardot arremata corações nas telonas e o ativista negro Luther King divulga sonhos no país do apartheid. No Brasil, a Ditadura Militar se instala sorrateira.

O contexto mundial de uma década de conflitos ambientou o nascimento da primeira banda de rock mato-grossense, de 1961 a 1970. Mato Grosso que, à época, “não era Mato Grossinho, era um Mato Grossão”, explica o geógrafo e músico Neurozito Barbosa de forma bem figurada. A separação do Mato Grosso do Sul é decretada somente em 1977; o disco Lenha, Brasa e Bronca veio em 1966. “Foi um acontecimento!”, lembra Neurô.

Naquele ano, a primeira banda pegaria estrada, de Cuiabá, para gravar um disco em São Paulo. Músicos e instrumentos dentro de uma Kombi velha e estragada. “Conclusão: ficamos na estrada, deixamos a Kombi numa cidadezinha, pegamos um ônibus e seguimos caminho. Ele era audacioso pra caramba”, disse, apontando o primeiro jovem da sequência na fotografia do disco.

Jacildo de Jesus, de Campo Grande, chega a Cuiabá em 1964, aos quase 30 anos. Tinha em mente dois projetos: um, formar a banda para ir a São Paulo gravar um disco; dois, tocar na Califórnia. “Foi aí que deu tudo errado, sair daqui e ir para a Califórnia no escuro?”, questionou, Neurô, guitarrista do conjunto – era assim que se chamava “banda” – Jacildo e Seus Rapazes. Negro e pobre, tinha como maior objetivo estudar.

Fonte: Almanaque de Cuiabá

Clube do Twist e Praça Alencastro: formação de uma cena

A música o pegou no fim do ano 1961, quando seu pai presenteou os três filhos homens com um relógio, uma bicicleta e um violão. A Neurozito coube o primeiro, mas, à primeira vista, se apaixonou pelo violão. “Tanto que depois que aprendi, passei para toda a família. Todos aprenderam a tocar comigo”, lembra.

O pai já recebia amigos em casa para tocar acordeom, tinha um violão e um pandeiro. Com a curiosidade de seus 10 anos de idade, Neurozito se posicionava no vão da porta para observar. “Criança não pode se meter na conversa de adulto, você sabe disso né?”, ele lembrava. E quando os convidados iam embora, ele fazia tudo o que os caras faziam no violão, tim-tim-por-tim-tim.

Mas a grande reviravolta na vida do garoto do município de Rosário Oeste foi a admissão no maior colégio de elite da capital, o Liceu Cuiabano. Não se lembra como, nem quem o trouxe para fazer o exame, mas aqui se enturmou com a burguesia. Andava com filho de gente rica, governador e vice-governador. “Incrível né? Como pode? Até onde eu não sei explicar”.

Agora estudante do colégio e munido do violão, ele galgava degraus na escada social de encontros na tradicional Praça Alencastro. Namorava até as jovenzinhas mais bonitas nos tempos áureos. Ali a juventude se reunia, alguns, após o trabalho e, outros, na sequência das sessões de filmes da matinê das três da tarde no Cine Teatro Cuiabá. Época que ele registrou no livro A música na década dos conflitos: a sina de um músico e a trajetória de uma banda.

Naquele dia a Praça Alencastro estava, como sempre, cheia de jovens que não se cansavam de “dar a volta no jardim”, como se falava naqueles idos anos que formavam a década de 1970. Do lado de dentro da grande calçada ficavam os pais ricos. Os pobres tinham que se contentar em dar a volta com suas garotas pelo lado de fora.

[…]

É certo que eu também andava cheio de pose ali na praça porque estudava no Liceu Cuiabano, misturado com um bando de gente da elite local. Por descuido da burguesia, que me permitiu fazer o Exame de Admissão, acabei me matriculando naquele colégio onde estudavam os filhos das gentes mais importantes da cidade. Portanto, eu não podia reclamar da vida, até porque, mesmo sendo negro e pobre, acabei me infiltrando na sociedade cuiabana. 

O cenário da formação de uma cena, mais tarde, foi destaque na capa do disco famigerado. Mais especificamente, a fonte luminosa da praça que enchia os olhos dos jovenzinhos e o deixava boquiaberto: “como que a água espirra?”. Quando ela surgiu, só conheciam a bica da Prainha e uma fonte na Praça Bispo Dom José. “Mas a água espirrando nunca ninguém imaginou que podia acontecer”.

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Já no Liceu Cuiabano, a querida professora Dunga resolveu fazer sarau. De sala em sala, passou perguntando sobre os dotes artísticos dos alunos. E do agrupamento montaram o Clube do Twist, instalado em um bar na Avenida Getúlio Vargas. Os músicos amadores agitavam a capital e interior se apresentando em festas nas casas de prováveis namoradas. “Só eu que ainda não pegava nem gripe”. Mas todos queriam cantar e ele acompanhava, foi quando a fama começou.

Todos os elementos do grupo botaram na cabeça que era cantores e/ou dançarinos. Arilson Figueiredo era o cantor principal (que Deus me perdoe). Sua canção preferida e que foi eleita para ser a “chamada” do grupo, era The Twist Again, de Chubby Cheker, que fazia um sucesso enorme mundão afora. Quando ele falava “Come on everybody, clap your hands! Ally ou looking good”, e começava a rebolar, todos os outros também saíram rebolando pelo salão, jogando, ora a perna esquerda, ora a perna direita, num espetáculo horripilante, considerando-se a feiura daqueles dançarinos chackerianos. O pior é que o povo gostava daquilo (pobres alienados!)

Quando entrou para o exército, integrou a banda para fugir de carpir quintal e fazer comida. Mas achava um tédio aquela sonoridade de fanfarra. “Aquilo me dava uma raiva…”. Queria fazer coisa nova, queria tocar guitarra quando formou seu primeiro conjunto, extraoficial, o Conjunto Continental.

No Grêmio João Antônio, abriram o show do conjunto de Jacildo, em 1964. Mas nada de rock, tocavam bolero e tchá tchá tchá. Nesse dia, reparando as reboladas de Neurozito, o líder o convidou a compor a (futura) Jacildo e Seus Rapazes com a segunda guitarra.

Jacildo de Jesus em apresentação no Cine Teatro Cuiabá, provavelmente em 1959. Fonte: Cuiabá de Antigamente/ Acervo Naurozito

Jovem Guarda cuiabana

O movimento da Jovem Guarda fervia em território nacional, com fortes influências do rock inglês e norte americano. Um iê-iê-iê encabeçado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, mesclando música, comportamento e moda. E Jacildo já visava colocar Mato Grosso nesse mapa. “Ele queria um conjunto que se encaixasse no movimento. Muito sonhador e audacioso, não tinha medo não”, lembra Neurô.

Servidor público da Receita Federal e guitarrista, já veio acompanhado de seu tio. Juarez Silva, mesma idade de Jacildo – 30 anos em 1965 –, era funcionário do Ministério da Agricultura e família tradicional cuiabana. O saxofonista João Bolinha e Formiga, junto com Neurô, eram os pés-rapados da banda.

Tocavam Beatles e Rolling Stones, tendo o blues como tom. As canções Understand you e Tarzan, rei dos macacos caracterizavam bem o estilo. Nada de Bossa Nova, nem eram adeptos ao Tropicalismo, estilos que se destacavam no Brasil naquela época. O soul music de James Brown e Aretha Franklin, por sua vez, também era bem aceito pela banda.

E quando a formação atendeu aos planos de Jacildo, o músico já circulava bem na cena e fazia amplos contatos, dentro e fora do Estado. Tocavam até três vezes ao dia. Começavam o primeiro às 17h e iam até às 19h. Outro das 19h30 às 21h30. Depois seguiam para o Clube Feminino ou Clube Dom Bosco para animar os bailes.

Diante da visibilidade da Jacildo e Seus Rapazes, seguindo a tendência Jovem Guarda, ainda surgiram em Cuiabá mais uns 15 conjuntos. “Filhinhos de papai” que ganhavam toda a aparelhagem e instrumento para realizar o sonho de ser um rock star, afirma Neurô. Fazer rock’n’roll naquela época era privilégio da classe média.

Mas só eles viajaram. Sem celular e internet, era no boca a boca. Na ida para São Paulo, o empresário saia na frente, arrematando contratos de cidade em cidade. “Daqui até lá, um mês para chegar, pelo tipo de locomoção e pelas paradas, aumentando dinheiro para gravar”. Na volta, com a fama, as portas já estavam abertas. “São Paulo parou”:

Cheguei devagarinho

Cheguei de mansinho

Levando a turma toda pra ali

Boneca fica em casa

A turma é uma brasa

Não saia nunca, nunca dali

Ié, ié ié…São Paulo parou

A turma toda grita

A garotada imita

Lenha, Brasa e Bronca tá ali

Comércio fecha a porta

A nós nada importa

Carango e calhambeque tá aqui

Ié, ié, ié…São Paulo parou

Jacildo e Seus Rapazes. Fonte: Cuiabá de Antigamente

Não só fama, também já ganhavam dinheiro na época. Mas nunca sabiam o valor dos contratos, conta Neurozito. “Além de inteligente, Jacildo era malandro”. Recebiam valor fixo por cada função, salário suficiente para dar um up na vida. “Fiz minha casinha para casar, comprei uma Kombi, que depois troquei por uma Brasília. Mas nunca largava de estudar”.

Mesmo dedicado aos estudos, chegou a reprovar na graduação algumas vezes por falta, viajavam muito com a banda. Mas com o ultimato da ida para Califórnia, meteu o pé: escolheu Cuiabá e a academia. “Foi conflituoso pra caramba. Pegou revólver, jogou na mesa, me amassou”. Mas a pressão não foi suficiente para mudar a decisão pautada na dura realidade da música mainstream naquela década de anseios, sonhos e duras realidades.

O mesmo aconteceu com os outros integrantes, um a um. Só restou Jacildo que nunca mais voltou. Passaram um tempo em Porto Velho, foram para Manaus e depois para a Venezuela. “Ele e a mulher, porque o resto também não aguentou, viram que era fria. Passaram muita dificuldade. Sempre me encontro com eles e pergunto. O Bolinha fugiu, Jacildo tinha mania de mandar. Chegou a montar uma banda de negros americanos na Guiana Francesa, não sei porque não deu certo. Voltaram para Venezuela e lá morreu no ano passado, aos 81 anos”.

Bar do Neurô: a casa do rock da geração 2000

Após a saída da banda, Neurozito ainda tocou profissionalmente em conjuntos no Sayonara, a maior boate do centro-oeste brasileiro. Uma verdadeira sensação. Lá passou seis anos, depois foi para o Clube Dom Bosco, onde trabalhou por três anos. Fez mestrado no Rio de Janeiro e quando retorno voltou a atuar na noite abrindo O Mirante Bar, em parceria com os filhos.

Junto com o negócio eles montaram a banda Sangue, concretizando sua trajetória musical pela MPB e com a família, chegou até a gravar um disco. “Mas ainda era muito difícil manter uma banda, sair, carregar instrumento, montar repertório, pesquisar, ensaiar, falta músico… Ave maria, desisti!”.

“Ah, mas o Bar do Neurô… foi uma loucura”. Neurozito tinha saído de uma experiência muito boa com O Mirante. Então algum tempo depois (“o problema é esse, se fosse em seguida, não tinha problema”), abriu as portas no Boa Esperança, em 2005.

Era para ser um bar “para adultos”. “Digo, as pessoas desses boleros, MPB, mas não colou”, explica. Sua antiga clientela já estava velha, não saiam mais a noite e o ritmo no bar durou só três meses. No rock, resistiu dois anos e meio. “Quando eu anunciei que era rock, a casa não cabia de gente, lá o sucesso era a Sixtons”, lembra Neurô.

A banda tocava todas às quintas-feiras para uma geração já sedenta pelo rock em suas mais diversas vertentes. Nas terças era jazz e blues, na quarta era reggae. Na sexta MPB, com Paulo Monarco, e, no sábado, era heavy metal. “No sábado eu dava a casa para as bandas. Falava: ‘Você que vai promover, te dou 70% do cover e você me dá 30 para cobrir as despesas’”.

Neurozito conta que, no bar, valia o lema sexo, drogas e rock’n’roll. “Tudo em perfeita harmonia”, conta. Mas essa época do rock já é outro capítulo da história…

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