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A Assembleia que brinca de tribunal coloca o Judiciário de joelhos

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A Assembleia que brinca de tribunal coloca o Judiciário de joelhos

Ednilson Aguiar/O Livre

Jornalista Augusto Nunes

“A cada quinze anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos 15 anteriores”, descobriu há meio século o jornalista Ivan Lessa. Essa periodicidade foi extraordinariamente reduzida pelo ritmo das operações anticorrupção executadas pela Polícia Federal: como o desfile de horrores não pode parar, a chegada do domingo aposenta as lembranças das bandalheiras ocorridas nos cinco dias úteis da semana.

Agora, a cada sete dias o país apaga da memória o que aconteceu nos sete dias anteriores. Isso explica por que o inverossímil faroeste à brasileira protagonizado pelo deputado estadual Gilmar Fabris já parece coisa de outros séculos, embora ainda esteja no meio. Para facilitar a vida dos desmemoriados profissionais, não custa desenhar:

1. Em 2 de agosto deste assombroso 2017, o ministro Luiz Fux declarou-se perplexo com o conteúdo da delação premiada do ex-governador Silval Barbosa, uma das estrelas do elenco que manteve Mato Grosso, por muitos anos, no alto do ranking da ladroagem nacional. “Essa é monstruosa”, resumiu enquanto aguardava o começo da sessão do Supremo Tribunal Federal. “Depois da Lava Jato, é a maior operação”.

2. Em 9 de agosto, ao informar que acabara de homologar o acordo de delação, Fux continuava espantado. Explicou que usara a expressão ‘assombrosa’ em razão da quantidade de anexos, do volume de infrações delatadas e da abrangência das revelações. “Depois da quebra do sigilo, todos poderão concordar com a afirmação”, avisou Fux.

3. Em 25 de agosto, o fim do segredo atestou que o ministro tinha razão. No pedido de abertura de inquérito formulado pela Procuradoria Geral da República e acolhido pelo STF, por exemplo, Rodrigo Janot saca o tresoitão do coldre nos primeiros parágrafos para mandar chumbo nos chefões da quadrilha hegemônica:

“Entre os agentes políticos, destaca-se a figura de Blairo Borges Maggi, o qual exercia, incontestavelmente, a função de liderança mais proeminente na organização criminosa, embora se possa afirmar que outros personagens tinham também sua parcela de comando no grupo, entre eles o próprio Silval Barbosa e José Geraldo Riva ex-deputado estadual de Mato Grosso”.

4. As práticas bandidas instituídas pela trinca incluíram o pagamento de mesadas a parlamentares alugados para assegurar uma gorda maioria na Assembleia Legislativa. Um deles era Gilmar Fabris, como atesta o vídeo em que contracena com Sílvio Correa, então chefe de gabinete de Silval.

— E aí? — pergunta o deputado ao entrar na sala em busca de dinheiro.

— Chegou um pedaço aí… — informa Correa.

— Pedaço? Por quê? Só um pedaço? — diz Fabris, traindo na voz a irritação com o parcelamento do suborno.

— Só um pedacinho — confirma o chefe de gabinete.

Na continuação do vídeo, quando Fabris sai da tela, a barriga obscena avisa que o deputado continua por lá. E os espectadores aprendem que, para um representante do povo mato-grossense, uma prestação no valor de R$ 100 mil é gorjeta.

5. Em 15 de setembro, Fux determinou que Fabris fosse preso por tentar obstruir a Justiça. Como seus advogados não conseguiram libertá-lo por meios legais, os colegas resolveram consumar o resgate transformando a Assembleia em tribunal.

6. Em 24 de outubro, 19 deputados presentes à sessão legislativa aprovaram, por unanimidade, a libertação do delinquente de estimação.

7. Em 25 de outubro, o resultado da votação foi promovido a alvará de soltura. Sob o silêncio do Tribunal Regional Federal, que dias antes se negara a autorizar a manobra corporativista e inconstitucional, Fabris voltou para casa escoltado por colegas, livre para reassumir o posto de vice-presidente da Assembleia Legislativa.

Nesta segunda-feira, 13 de novembro, o teatro do absurdo teria chegado ao clímax se o próprio Gilmar Fabris não tivesse desconfiado que há limites também para o cinismo, o deboche e a insolência. Com o governador Pedro Taques entre a China e a Alemanha, onde se encontrará com o vice Carlos Fávaro, a chefia do Executivo será exercida pelo presidente da Assembleia, Eduardo Botelho. O vice Fabris só não estará comandando o Poder Legislativo porque o que resta de prudência o aconselhou a fazer um check-up que só terminará com a volta de Pedro Taques.

O truque não revoga a afronta consumada pelos 19 deputados fantasiados de juízes. Ou Fux e os desembargadores do TRF reagem ao surto de atrevimento ou terão contribuído para ampliar superpoderes que o grande Millôr Fernandes pulverizou em outra definição definitiva: “Isto sim é um Congresso eficiente. Ele mesmo rouba, ele mesmo julga, ele mesmo absolve”.

A Assembleia de Mato Grosso chegou à perfeição: julga, absolve e também arromba a porta da cadeia.

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